|
Resenha Crítica
A CONSTRUÇÃO DE UM ESCRITOR
Prof. Rosse Marye Bernardi
Professora da Universidade Federal do Paraná
Em: Cristovão Tezza. Série Paranaenses,
nº 5.
Curitiba: Ed. da UFPR, 1994. pp. 5-16
Eu sou um homem construído pelas histórias que
escrevi.
Curitibano nascido em Lages-SC, podemos dizer que Cristovão
Tezza se fez escritor por vontade, seguindo um projeto a tal ponto
incorporado a sua personalidade que o próprio autor diz
não conseguir imaginar a sua vida sem o ato de escrever.
Começou poeta - escreveu seu primeiro livro aos 13 anos
e já nessa época, textos na mão, percorria
a redação dos jornais, em busca de espaço
para publicação. Os poemas do adolescente não
ficaram (nem mesmo escondidos no baú da memória),
mas restou a certeza do ser escritor, dado fundamental no desenvolvimento
de sua personalidade. essencialmente literária.
Tezza foi um típico representante da geração
dos anos 60 - uma geração que acreditava nos sonhos,
desejava mudar o mundo e fazia opções por formas
alternativas de vida. Em busca de caminhos, participou do Centro
Capela de Artes Populares, dirigido por Wilson Rio Apa, cuja postura
artística e ideológica influenciaria sua produção
inicial. Em 68, integrado à comunidade, em Antomna, pequena
cidade no litoral paranaense, Cristovão é oficializado
como um dos autores teatrais do grupo, além dc desenvolver
cxperiência como ator, diretor, contra-regra e iluminador.
Monólogo do amanhã e Os confinados, peças
de sua autoria, montadas pelo grupo, tiveram à época
algum sucesso. Essa experiência teatral - propiciando a
percepção da síntese, da visibilidade e domínio
do diálogo - marcará para sempre a visão
artística de Tezza.
Em 71, ele conclui seu primeiro romance - O papagaio que morreu
de câncer. Seguem-se A televida e A máquina
imprestável, todos impiedosamente destruídos.
Nesta época, ainda, Cristovão escreve Sopa de
legumes. uma brincadeira que carnavalizava a vida quase mitológica
da comunidade - hippies, marginais, desocupados - que se agrupava
sob a liderança de Rio Apa. Nesse texto, zelosa e afetivamente
guardado, e cuja tônica maior era o riso, a crítica
e a autocrítica, vamos encontrar o humor, marca registrada
da sua narrativa. No tocante a seus personagem, Sopa de legumes
é, de certa forma, a antecipação da incrível
humanidade que povoará a obra madura de Cristovão
Tezza.
A experiência comunitária é interrompida
em dois momentos. Primeiro, em 1971. quando o canto da sereia
o leva a uma frustrada tentativa de tornar-se oficial da Marinha
Mercante. Já em 75, a intenção é estudar
Letras em Coimbra. Como a Universidade está fechada - é
a época da Revolução dos Cravos em Portugal
- Cristovão se faz trabalhador clandestino na Alemanha
e viaja pela Europa. A solidão o faz escrever e reescrever
a maior parte dos contos de A cidade inventada.
Um ano depois, em 76, ei-lo novamente em Antonina, agora transfornado
em joalheiro - (a curiosidade pelos mecanismos delicados e precisos
é análoga à paixão com que se debruçará,
mais tarde, sobre o mecanismo das ações humanas)
- dono de uma pequena joalheria de insuspeitado nome literário:
"Cinco em ponto", homenagem ao poema de Lorca. Mas não
consegue mais se reintegrar ao espírito da comunidade,
ao seu sonho de reinventar lendas ancestrais. A literatura que
ele precisa escrever não mais se enquadra nos limites do
romantismo anárquico.
Já casado, parte para o Acre, onde vai ser professor de
Cursinho e aluno do Curso de Letras. Ainda inseguro de seus meios
expressivos, aventura-se novamente na linguagem romanesca, iniciando
a escritura de Gran circo das Américas. No ano seguinte
- 78 - atraca em Curitiba, matricula-se em sua velha Universidade
e escreve poesias. Nesse ano tem o seu primeiro texto publicado.
Trata-se de Os
telhados de Coimbra, na antologia Assim escrevem os
paranaenses. A essa época encanta-se com as ciências
da linguagem. Na construção do artista este é
um momento crucial. A vida já nutrira de aventuras e experiências
a sua curiosidade e sensibilidade. Agora é a vez do conhecimento
científico. Assim aprofunda teorias e conscientiza-se de
técnicas antes apenas intuídas. É também
o momento em que descobre que a prosa é a linguagem mais
adequada à cristalização literária
de sua visão de mundo. Sem medo de influências, transforma-se
num devorador cada vez mais voraz de livros, ao mesmo tempo em
que começa a produzir sistematicamente a sua própria
literatura. Em 83, já tem publicados Gran Circo das
Américas e A cidade inventada. O terrorista
lírico, Ensaio da paixão e Trapo repousam
na gaveta.
Apesar dos prêmios, para sobreviver, enquanto o sucesso
não vem, decide-se pela vida acadêmica. Matricula-se
no Curso de Pós-Graduação em Letras na UFSC.
A tese, sobre a obra de Rio Apa, é a comprovação
de que a arte pode conviver com a ciência, e é, ao
mesmo tempo, a releitura do próprio passado. Eu acrescentaria
- é também a superação do seu passado
artístico.
Em 1986, contratado como Professor de Língua Portuguesa
na UFPR - retorna a Curitiba. Desta vez para ficar e escrever
a sua obra.
A OBRA EM CONSTRUÇÃO
Considero o ato de escrever uma aventura ética. Não
posso entender nenhuma obra de arte que não tenha relação
com todo o complexo sistema de valores que nos rodeiam.
A leitura atenta dos oito títulos já publicados
por Cristovão Tezza surpreende uma obra que processa o
adensamento dos temas e o amadurecimento dos meios expressivos
de livro para livro. Para melhor evidenciar tal pressuposto, como
fio condutor destes breves comentários críticos
sobre sua obra, optamos pela cronologia da produção
dos textos - que nem sempre corresponderá à cronologia
das publicações.
Assim, A cidade inventada, que teve muitos de seus textos
escritos nas andanças européias do autor, é
uma obra que sob alguns aspectos se diferencia de todas as demais.
Primeiro, por ser um livro de contos - o que implica um tratamento
específico da linguagem; segundo, porque o registro literário,
acompanhando a atmosfera temática. privilegia o fantástico
e o simbólico, a maneira de Borges, a quem aliás
é dedicado Os sábios, a última e melhor
parte do livro - que (fazendo a abertura de um dos seus mais freqüentes
temas) se debruça sobre a própria literatura.
Mas é na visão de mundo, na postura diante da civilização
urbana e nos conceitos literários que mais percebemos o
distanciamento entre este e os livros mais recentes. Aqui os contos
funcionam como uma espécie de fragmentos organizados em
torno de uma idéia central - a decadência de uma
cultura desumana, com sua sofisticação vazia, sua
arte degenerada, e um isolamento exacerbado que caminha para um
inexorável fim. Em quase todos os textos há uma
tentativa de fuga. As personagens correm por catacumbas, percorrem
teatros vazios, dirigidos por estranhos guias - sempre mulheres
- em busca de uma saída e uma liberdade que não
se consegue encontrar.
A atmosfera e a ideologia deste livro, com sua apocalíptica
visão dos aglomerados urbanos e sua implícita recusa
de toda arte que não seja essencialmente popular, que não
pretenda encontrar o homem enquanto arquétipo - tem tudo
a ver com a experiência comunitária do jovem Cristovão
na minúscula Antonina e com a sua contraface - a viagem
por uma Europa ainda não refeita dos conflitos ideológicos
urbanos da década de 60, e sua quase reedição
na Revolução dos Cravos portuguesa. Produto de uma
sensibilidade historicamente datada, implicando relações
sócio-culturais específicas. a obra é a cristalização
literária das revoltas e dos sonhos de um momento de uma
geração. Daí a sua importância - e
a força de suas idéias que tingirão ainda.
de maneira desigual, outras obras - além da inegável
qualidade de muitos contos (leia-se atentamente A obra, o fim,
ou Memória, por exemplo), que mereceram o pertinente
comentário critico de Milton José de Almeida:
Os contos de Tezza dão a impressão de ensaios
para projetos mais profundos, como um músico que toca
aquelas peças de praxe, que apesar de simples, mostram
a qualidade do insfrumentista. Esperamos que ele chegue a nos
dar um concerto.(*)
Gran Circo das Américas, escrito entre 77 e 78,
reflete uma alteração de postura ou pelo menos a
tentativa consciente de alterar tecnicamente o tratamento dado
ao assunto literário. Não mais contos, não
mais fantásticas atmosferas, embora enquanto núcleo
permaneça o tema do desajuste, da inadequação
ao sistema. O olhar do autor-narrador, ainda desprovido dos recursos
da argúcia e da ironia, despreza os personagens comuns
e enfoca o ser que recusa enquadrar-se.
O circo, com toda a sua carga semântica e simbólica
de aventuras, poesia e marginalização, é
o espaço onde aporta o jovem Juliano para fugir à
autoridade opressora do tio, velho juiz destituído de qualquer
sensibilidade. É a história desta fuga, de uma perseguição
sem trégua e da solidariedade da pequena troupe mambembe
que Cristovão nos transmite nesta narrativa linear, bem
estruturada e de fortes traços românticos, que privilegia
o diálogo. Livro simples, de fácil leitura, caiu
no agrado dos jovens. Esteticamente poderíamos dizer que
nele o autor praticou exercícios literários, úteis
para aprimorar a sua técnica, mas que pouco acrescentaram,
a sua obra.
Desta fragilidade não se ressente O terrorista lírico,
livro escrito em 1980 e publicado no ano seguinte. O texto, em
primeira pessoa, apresenta a estrutura de um diário e é
um mergulho na solidão humana e na incapacidade de relacionamento
entre as pessoas, ao mesmo tempo que expõe a construção
do texto, não como um mero exercício metalingüístico,
mas como reflexão sobre as relações entre
a vida e a arte.
Nesse livro. Cristovão já manipula com alguma segurança
a distância entre a sua visão de mundo enquanto centro
ideológico e a visão de mundo de um personagem narrador,
no caso o terrorista Raul Vasques. E este distanciamento que permite
ao leitor vislumbrar o olhar que vê outro olhar, a linguagem
que comenta e refrata outra linguagem, criando a zona da ironia
e do humor, porta aberta para a reflexão sobre a condição
humana - que se constituirá numa das características
mais importantes da obra de Tezza.
O Terrorista Lírico tem em comum com o livro anterior
o tema da destruição da cidade - acontecimento totalmente
inverossímil, mas que. submetido a um tratamento realista,
dá ao texto uma configuração fantástica.
Ainda marcado para um romantismo ideológico, o autor permite
que seu personagem encontre uma saída. Destruída
a cidade (símbolo de uma civilização apodrecida),
Raul desce para o mar com a mulher e juntos vão reconstruir
o mundo.
A esta época. Tezza produz com bastante rapidez. Em 81
já esta pronto o livro Ensaio da paixão,
que inicialmente recebera o título de Devassa da paixão.
Reciclando a concepção de Sopa de legumes,
que não estabelecia distância entre a vida e o texto,
esse novo romance é a recriação artística,
ficcional, da experiência comunitária e das atividades
de teatro popular que o autor viveu nas décadas de 60 e
70. Reatualizando e ritualizando a encenação da
Paixão e carregando em algum momentos na linha do fantástico,
o texto, à maneira do que se fazia à época
em Alexandra, no Paraná, e depois em Florianópolis,
dá ao mito conotações político-existenciais,
pois o que se ensaiava ou encenava acaba sendo a própria
vida dos participantes, simbolizando, na absurda batalha final,
a luta de todos os homens contra a tirania e a opressão.
Na comunidade Tezza também encontrou, confessadamente,
a matéria prima para seus personagens:
pessoas desvinculadas do sistema de produção
... marginais, hippies e desocupados em geral. Esse miolo parece
que permaneceu na minha literatura como se essas pessoas reservassem
o que há de melhor na espécie humana. Uma reserva
de revolta.
É no Ensaio da paixão, pela sua própria
marcação teatral, que vai aparecer o mais amplo
painel desta humanidade, tão cara à sua visão
de mundo e que estará presente em toda a sua obra. No entanto,
fique claro ao leitor que as pessoas reais são apenas pontos
de referência para o desenho das personagens, seres ficcionais
com características sociais determinadas. Em Ensaio
da paixão não temos protagonistas, mas personagens
que se destacam pelas suas próprias possibilidades dramáticas
como Pablo, Cisco, Toco e seu inseparável anjo, Miro, Edgar,
Isaías e muitos outros. Há ainda e não poderia
deixar de ser, para um autor que faz da literatura um dos seus
mais constantes temas, um escritor, Antônio Donetti, que
não consegue vencer os limites da própria pequenez.
O texto, apesar de envolvente, dinâmico, se ressente do
tamanho excessivo e ainda, a meu ver, mereceria um melhor tratamento
narrativo. Mas é uma obra inegavelmente importante no universo
ficcional de Tezza.
É a partir do romance Trapo, escrito em 82, que
vai ocorrer o grande salto qualitativo de sua obra. E também
o texto que vai abrir-lhe as portas da critica e do público:
"Alguma coisa nova, realmente nova, na temática, no
estilo e na criação dos personagens foi introduzida
por Cristovão Tezza", saúda Wilson Martins.
Na realidade, em termos formais, há aqui, nesta obra uma
consciência da linguagem e um tal domínio das possibilidades
da linguagem romanesca, que de repente se percebe que toda a produção
anterior era o paciente preparo para este momento - provavelmente
o do "concerto" de que falara o crítico Milton
José de Almeida ao comentar A Cidade Inventada.
Apropriando-se de diferentes extratos da linguagem social - o
do jovem poeta desajustado e o do velho professor aposentado -
para citar apenas o contraponto dos discursos que constroem a
narrativa, Cristovão trabalha com maestria, a alma de duas
gerações antagônicas - dando a cada uma delas
um grau de humanidade só alcançado pela boa literatura.
Ou como observou Liliane Reales:
As vozes narrativas que conduzem o romance, a de Trapo e
a do Professor Manuel - um viúvo solitário e de
suspeita competência profissional a cujas mãos
vão parar as caóticas páginas escritas
por Trapo pernitem ao autor um cativante exercicio da fealdade,
escrita numa linguagem oral despida de qualquer lance súbito
de poesia e beleza. A emoção fica por conta das
sutilezas, ou por conta do avesso.
A escritura de Cristovão Tezza sabe dar conta de muitas
paixões, muitas razões e paradoxos. Nas palavras
de Elisa C. de Quadros: "o velho professor passa a valorizar
a vida quando espreitado pela morte do jovem". Poderíamos
acrescentar - como a maioria dos homens, o Professor Manuel só
vai saber de si a partir do que lhe contam os escritos de Trapo.
Um bom mote para nossa própria reflexão.
Mas, se em relação à visão de mundo
houve amadurecimento dos temas comuns às obras anteriores,
Trapo é, no tocante à geografia romanesca.
a descoberta do espaço ideal do romancista:
Cristovão Tezza escreve o romance da vida cotidiana
da cidade moderna, organismo psicológico em estado de
permanente fluidez, que sentimos sem poder definir (...) Estamos
em Curitiba, mas a Curitiba de Cristovão Tezza não
é mais a Curitiba de Dalton Trevisan.
Esta Curitiba a que o crítico se refere, tão ambígua
que permite duas soberbas apreensões literárias,
transcende evidentemente as simples referências espaciais,
para se caracterizar como um olhar enviezado. um estado de espírito,
uma atmosfera, uma maneira de ser. Em Cristovão, tudo isto
condimentado por um humor tipicamente curitibano, que Wilson Martins
diz ser "descontraído, cáustico e vingador".
Enfim, o cenário ideal para os homens passearem os seus
dramas.
O romance seguinte - Aventuras provisórias - nome
definitivo para um texto que já fora provisoriamente Elogio
do fracasso e Minha mãe e outras mulheres, é
a consagração deste espaço, aparente paraíso
de uma classe média a perseguir o conforto e a satisfação
em infindáveis mudanças pelos bairros de Curitiba.
Mas Aventuras provisórias é principalmente
uma bela e terrível história, suavizada por sarcástica
ironia - e que faz reviver Pablo, personagem de Ensaio da paixão.
Este recurso vai dar à obra como um todo, uma unidade e
uma coesão prenhe de significados. Fiel a sua dolorosa
humanidade, Cristovão focaliza seres inadequados, desajustados
à engrenagem social, aqui colocados no limite entre o salvar-se
ou o perder-se para sempre. Pablo se perde na busca da salvação
- ele não consegue deter a Roda - o sistema, muito maior
do que o seu sonho marginal. Depois do crime, ele pede ao amigo:
"Você escreve, então? Assim já tenho
outro projeto na vida: ler minha história".
E é este texto, em primeira pessoa, em que Cristovão
se movimenta com extraordinária maestria, que vai iluminar
as aproximações e diferenças entre os dois
personagens. João, o narrador, é o indivíduo
classe-média, rico, que se desencontra na vida e nas suas
mulheres, sempre aquém ou além dos seus desejos,
dai o fracasso íntimo, existencial - que se espelha pelo
avesso na história do amigo Pablo:
Quem não veria em Pablo, o Puro, marginalizado em
comunidades rurais, e dado a metafisicas contemplações,
o "duplo" dum João pequeno-burguês, para
quem tudo é "provisório' porque não
consegue se fixar em nada, preso à mãe que execra,
mas de quem não se libertou?
Entre ambos, a uni-os ainda mais em suas desesperanças
a Roda, - o sistema, personagem e leitmotiv do texto, sempre presente
e implacável, a vedar as saídas e esmagar todas
as ilusões.
Juliano Pavollini, escrito entre 87 e 88 é o terceiro
e provavelmente o mais elaborado livro da trilogia que o autor
chamou "informal", referindo-se ainda a Trapo
e Aventuras provisórias.
Apesar de aproximações temporais. espaciais e temáticas,
encerrando uma espécie de ciclo que revisita a Curitiba
dos anos 60 e 70, há nestas obras diferenças fundamentais
quanto à linguagem, que bem ilustram o cuidado do autor
em relação a este tópico. Partindo do pressuposto
de que a "voz" de um personagem implica a sua própria
substância humana e a sua própria individualidade
- Cristovão tem primado pela elaboração de
linguagens diferentes em cada livro, embora isto se evidencie
mais claramente nas narrativas em primeira pessoa. onde o olhar
que vê e conta o mundo apresenta-se marcado pelos elementos
culturais e o universo de referências, evidentemente diversas
de personagem para personagem.
Assim, por exemplo, a "voz" de Juliano é a "voz"
da sua consciência social - somatória de todas as
linguagens que constituíram a sua aprendizagem do mundo
e que é comentada e refratada pelo autor de uma forma tão
sutil que:
Parece que os personagens e não o autor possuem o
controle do enredo. Passa-se do cacoete "proustiano"
a um realismo "bukowskiano" ou a la Rubem Fonseca
(o de Feliz ano novo,), como preferirem. O livro começa
a ser freqüentado por palavrões e Juliano se multiplica:
malandro, tímido, pervertido, inseguro, intelectual e
virgem, tudo cabe na sua imagem.
Os mais diversos ingredientes romanescos cabem na escrita memorialística
de Juliano. Adolescente rebelde. educado num bordel, onde se alimentara
de livros de aventuras, para ele escrever é se construir
enquanto verdade ou enquanto mentira desesperada maneira de estabelecer
uma ponte afetiva com o outro:
A minha palavra é minha sedução - a
cada capítulo estou mais próximo da liberdade,
Clara tem poderes no presídio. Avanço dia-a-dia
no labirinto da minha história, sempre dupla: o texto
que ela lê não é este que eu escrevo. O
texto que eu escrevo não é o que eu vivi, e aquele
que eu vivi não é o que eu pensava, mas não
importa - continuo correndo atrás de mim e esbarrando
numa multidão de seres. E neles, só neles, que
tenho algum esboço de medida. (Juliano Pavollini,
p. 113).
Entre este velar-se e desvelar-se. o narrador vai compondo uma
narrativa quase camaleônica que prende o leitor da primeira
á última página e que deu à crítica
a certeza de que já se está diante de um universo
romanesco singular:
O leitmotiv de Cristovão Tezza é a solidão
moral de seus protagonistas, seres cindidos entre a enormidade
dos sonhos, maiores que toda uma vida, e a estreiteza do dia-a-dia,
sucessão de trivialidades. O descompasso entre querer
e poder, entre planejar e realizar ou entre pensar e dizer traduz-se
em hediondas transgressões às normas éticas
e sociais, a repelir os que se queriam próximos, a provocar
o ódio quando se anseia por amor a trazer a guerra em
lugar de paz.
Afirmações que cabem também ao último
livro publicado por Tezza - A suavidade do vento, desenvolvido
a partir de um projeto aprovado pela Fundação Vitae
de Literatura, em 90, o que lhe valeu uma bolsa para escrevê-lo.
A obra gira em torno da implícita tese de que o indivíduo
só existe a partir do olhar e da aprovação
do outro ou dos outros - proposição que lembra as
elocubrações machadianas de Teoria do Medalhão
e O espelho e que nos diz da família de escritores a que
Cristovão vai filiar-se, não como influência
(pois escrever para ele é um processo de autoconhecimento)
mas como aproximações estético/sociais que
enformam visões de mundo afins, não idênticas.
O texto, em termos de procedimentos estruturais, expõe-se
à maneira de uma peça dramática. Há
um "Prólogo" em que um autor ficcional estaciona
o seu velho ônibus, liberando figuras enfumaçadas
que no "Primeiro Ato", no "Entretanto", e
no "Segundo ato" ganham a consistência de atores
dirigidos por um narrador que lhes comenta as ações
e o desempenho. Finda a "peça", na última
parte do texto - "Cortina", o autor reúne os
"personagens atores" para que vão comentando
a encenação até desaparecerem lentamente.
Por trás de tudo, o verdadeiro autor Cristovão Tezza
dá aos seus leitores uma bela lição do distanciamento
ficcional, comentando e retratando com sofisticado humor os pontos
de vista das personagens, que nada mais são do que possibilidades
ou virtualidades nas suas mãos de criador.
Quanto ao drama encenado, nele temos um professor interiorano,
Josilei Maria Matôzo, tímido e solitário até
a patologia - e que sobrevive no seu quarto povoado de monstros,
fazendo consultas ao I-Ching e lendo A paixão
Segundo GH, de Clarice Lispector. Estas ações
vicárias são complementadas com a lenta escritura
de um livro - A suavidade do vento que, segundo sonha, irá
redimi-lo e transformá-lo num outro homem. No entanto,
a publicação do livro, mais uma entrevista que Matôzo
(agora J. Mattoso) concede a uma revista, cheia de mentiras contadas
por ele mesmo, criam uma série de equívocos que
tornam impossível qualquer comunicação com
os habitantes da aldeia. Súbito, ele se descobre o próprio
livro e lhe vem a aguda consciência de que:
Só a negação de tudo, do livro, do
nome, da matéria na revista, da diferença pode
fazer com que (...) sobreviva a própria história.
O sacrifício se torna inevitável e Matôzo
opta por se enquadrar, por ser aquilo que esperavam dele (...).
Assim, no fechamento da amarga parábola. Matôzo
renuncia a si mesmo, rendendo-se à constatação
de que ele só tem existência real quando refletido
no olhar do outro, que o legitima. A única saída
que lhe resta, portanto, ésobreviver por caminhos destroçados.
A obra construída por Cristovão até o presente
momento já é suficiente para que o consideremos
um escritor maduro, fiel a um projeto narrativo que se aprimora
constantemente e que tem permitido aos leitores que viajam ao
seu lado, investigar eticamente o homem - fim maior de toda literatura.
Escrevendo por prazer e necessidade, Cristovão já
tem no prelo o romance O fantasma de infância, a
ser editado no segundo semestre de 94, pela Record. A obra que
o autor adianta ser uma "narrativa dupla" trará
de volta Juliano Pavollini, uma de suas mais belas criações.
Mas acreditamos que o autor, como sua criatura, terá ainda
muitas e boas "idéias na cabeça".
Curitiba, julho de 1993
voltar
|