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OS TELHADOS DE COIMBRA
Cristovão Tezza
Ouvi os passos na escada. No último lance ela subia devagar
para me fazer surpresa. Abriu a porta de repente. Com Maria vinha
o perfume e uma espécie de amparo.
- Meu amor, há um ano que nos conhecemos!
- Viva!
Revistou a sacola, era uma garrafa de vinho verde.
- Que estás a fazer?
- Uma obra-prima.
- Então dá-me um beijo.
- Dou só pela colocaçào do pronome. Vou te
nomear minha colocadora de pronomes. Eu falo e você põe
os pronomes.
Ela riu, me abraçou.
- Eu te amo, rapariga!
Coimbra, Coimbra! Viva D. Duarte!
- Minha flor, quem foi D. Duarte?
- Um gajo.
Ela revirava a pia:
- Os copos estão todos sujos.
- Não posso fazer tudo. O mundo espera minha obra.
Voltei a pintar enquanto ela abria o vinho. Uma faixa de sol subia
na parede, sobre o Cristo de Dali, sobre a máscara de Guevara.
Eu recriava os telhados de Coimbra, as fachadas de antigamente,
as velhas de preto com cestos à cabeça. Precisava
de raízes, no tempo, no espaço. Era preciso descobrir
minha terra. Onde canta o sabiá. Nas bananeiras de Porto
Antonina.
-Tu nem te lembravas da data.
- Sou um canalha.
- Não fala assim!
Maria me estendeu o copo de vinho.
- Tu não fizeste a barba.
- É uma longa história.
Puxamos duas cadeiras para a janela com sacada e ficamos a olhar
o céu de Coimbra. O sol se punha atrás do morro,
dos telhados.
- Tu gostas mesmo de mim?
Fiz que sim.
- Conta-me a história da barba.
- Tem uma fantasma no banheiro. Eu ia fazer a barba e ouvi uns
sons estranhos. A porta rangeu sozinha. Então eu saí
e tranquei o fantasma lá dentro.
No terceiro copo de vinho minha paz se transformava em melancolia.
Triste e bela Coimbra.
- Tu tens saudades do Brasil, não é?
- Às vezes.
- Se fosse para nós vivermos lá, que cidade tu escolherias?
- Porto Antonina.
- Por quê?
- Porque não tem futuro. Maria não acreditava:
- Bobo! - Beijou-me: - Eu não quero que tu vás para
o Brasil. Gostava de ir contigo. Mas para voltar logo.
- Um dia nós vamos. Quando eu estiver milionário.
- Então não sabes que não haverá mais
milionários em Portugal?
- É verdade, meu anjo. Esta é a Terra Prometida.
E eu te gosto e tu me gostas!
- Então por que estás triste?
- Eu estou pensativo.
- Tu pensas muito. Não vale a pena.
- Mas estou feliz.
Um eléctrico avançou ladeira acima de forma que
ficamos em silêncio enquanto o prédio tremia. Depois
uma sirene subiu à praça da República e ouvimos
vozes na calçada de baixo. Então ela perguntou:
- O que há em Porto Antonina?
- Um porto onde não chega navio. Todo dia a população
imagina: hoje vem um navio, e fica olhando o mar. Mas o navio
não chega nunca.
- Que horrível!
Eu não achava.
- E o que é mais?
- Um profeta que é louco mas que não é louco.
- Um fascista?
Eu achei graça:
- Não. É um mago.
Lembrei-me do Velho Pai cuidando o barco, habitante das ilhas
e dos remansos, a barba branca, a paz na fala. Enchi o copo mais
uma vez.
-Viva o vinho!
- Estás a te fartar de bebida.
- Hoje é um dia especial.
Maria começava a gostar de Porto Antonina.
- E o que é mais que lá há?
- As pernas da Heloísa.
Ela riu.
- O que tem as pernas dela?
- Todas as noites eu dormia pensando nas pernas da Heloísa.
Ela vende pinga com limão e veste um saiote azul. Eu ia
lá beber a tristeza de não poder tocar nas pernas
da Heloísa.
- Bem que ela faz.
- Pensando bem, acho que ela não ligaria. As pernas é
que são intocáveis, compreende?
- Não percebo.
Se eu levantasse um pouco a cabeça o sol pegaria bem nos
meus olhos. Maria encostou mais a cadeira e apertou minha mão.
Bebi mais um gole. Ela tirou os sapatos e estendeu as pernas coladas
sobre a grade de ferro e ficou se olhando.
- Tu gostas das minhas pernas?
- Eu gosto.
- São mais bonitas que as da Heloísa?
- As delas não contam.
- Seu mau. - Ela se vingava: - Alguém deve estar a pegar
as pernas dela agora mesmo!
Coimbra, Coimbra. Logo eu teria que me decidir, não sabia
bem pelo que, nem como. Há uma terra que é minha
do outro lado do mar. Enquanto isso eu e Maria representávamos
a liberdade absoluta.
- Para festejar nosso primeiro aniversário tu devias me
levar à Espanha.
- Só depois que Franco morrer.
Em pouco tempo eu estaria sem dinheiro. Eu gostaria de poder me
incorporar àquela paisagem para sempre. Neste lado do Mondego.
Bebi outro gole e beijei-a. O sol não me alcançava
mais, a brisa esfriava. O anoitecer era o melhor de tudo. Pensava
nas telas encalhadas e elaborava planos de gênio. Pensava
em Coimbra, nos velhos teatros reformados em cinemas sempre de
lotações esgotadas, nas ruelas medievais, subidas
e descidas onde eu me perdia e onde nunca ninguém amanhece
morto a facadas, para meu espanto. À noite tudo era uma
só coisa. O bilhar do Luna cheio de brasileiros, os cafés
da Baixa, as tascas fedorentas e agradáveis da rua Direita,
as raras prostitutas nas janelinhas quadradas. À noite
Coimbra se somava, a Biblioteca Geral apagava as luzes, enrolava
os pergaminhos, a sabedoria velha, os reis, os cavaleiros, e os
cartazes políticos subiam pelos muros, marcando um outro
tempo.
Maria me adivinhava:
- Gostas de cá?
Eu gostava do enigma a ser mais uma vez decifrado. Eu não
tinha futuro, mas toda a história futura já estava
em mim, como em Portugal, oculto nas lavadeiras do Mondego, no
conductor do eléctrico, na multidão dos filhos.
- Viva Portugal Socialista!
Brindamos. Era o último copo mais eu tinha uma garrafa
de vinho tinto no armário, de forma que não me angustiei.
Com o frio da noite o abraço ficava mais gostoso.
- Meu bem, por que não casamos?
- O casamento é ridículo.
- Eu sei. Mas tu podias casar assim mesmo.
- É que sou um canalha.
- Começo a perceber.
Ela nunca ficava zangada, era um mistério para mim. Eu
pensava que ela me traía e assim ficava descansado. Fechei
a janela. Em silêncio ficamos nos olhando sem ver exatamente
um ao outro. Eu podia sentir sua respiração crescer
até que a sombra se aproximava e me tateava e então
me segurava firme nos braços. Ela tinha medo. Eu ria e
o encanto se quebrava, ela ria também e nada dizíamos.
A desolação ia me tomando. Acendi a luz e fui buscar
a outra garrafa.
Maria gritou do banheiro:
- Não há nenhum fantasma cá!
- Então já foi embora.
Fiquei a olhar minha tela, sem esperança. Era uma lucidez
venenosa: eis a decoração dos salões de veludo.
Faço o que sei fazer. Faço o que devo fazer. Maria
me abraçou. Eu pensava em decadência:
- Maria, vou ser dissecador de múmias.
- Até que levas jeito. Gostava de te ver de branco com
um bisturi na mão.
Eu cismava:
- Estou a ficar louco. Preciso urgente descobrir minha terra.
- Não é o Brasil?
Lembrei-me dos bascos: "Yo no soy espaflol, yo soy basco".
- É diferente.
Ela olhava o quadro:
- Não está mal. Por que tu não pintas quadros
políticos?
- Depois eu ponho uma foice e um martelo no canto esquerdo e fico
de bem com a revolução.
- És mas um fascista!
Agora bebíamos vinho tinto.
- Tu precisas ir lá em casa.
- Não agüento o teu pai. Ele precisa ser saneado.
- Credo!
- Isso não pode continuar um país de freiras e padres
superiores.
- Eu cá já fiz minha revoluçãozita
particular.
- Tudo escondido. Por que você não foge comigo?.
Eu fingia que falava sério, ela fingia que acreditava.
- Não posso.
- Não me convence.
- Tenho aulas na Faculdade.
Maria tinha as sobrancelhas grossas, o cabelo escuro. No começo
eu achava as portuguesas feias, mas fui descobrindo esta outra
espécie de beleza, burilada em mil anos de mesma raça.
Eu me sentia bem com ela. Sabíamos pouco um do outro. Ela
sumia semanas e então eu passava a pintar menos e debruçava-me
na sacada imaginando onde seria a terra dos emigrantes e dos marginais.
A solidão só seria mitigada pelo vinho e em seguida
por um sono de pedra até às quatro do outro dia.
Assim economizava um almoço e evitava o convívio
com os universitários e seus futuros radiosos. Não
chegava a ser azedume, eu tinha paz. Gostava de Maria mas sentia-me
envergonhado de lhe pedir o que quer que fosse, nem que ela me
amasse, nem que aparecesse mais. Eu nada tinha a lhe dar. Quando
fazíamos amor ela ficava nervosa e tinha medo e não
me abraçava completamente nem se entregava. Ela ficava
tensa e gemia mais de dor do que prazer. Havia uma espécie
de paz em tudo aquilo, uma verdade antiga, angustiada. Fechávamos
as janelas e mesmo de luz apagada ela dizia para eu me virar enquanto
ela tirasse a roupa e eu obedecia. Ela era gentil, trazia-me presentes
e pouco perguntava. Eu tinha medo que aquilo acabasse e ao mesmo
tempo não queria perder minha liberdade. Prezava minha
solidão, alimentava-a com teimosia.
- Minha flor, onde vamos à noite?
Ela recolheu os copos, dona-de-casa:
- Tu vais dormir cedo. Estás com olheiras.
- Sim, mamãe.
- E eu vou a casa estudar que amanhã tenho freqüência.
Eu teria que sobreviver penosamente até a hora que me desse
sono. À noite eu trazia o mundo para o meu quarto e tentava
montá-lo como um quebra-cabeças onde tudo se encaixasse
com perfeição. Eu pensava como quem pinta um quadro
e dormia com a sensação vaga de que o mundo estava
arrumado. No outro dia, com o sol na parede e os fantasmas à
solta, eu recomeçaria a tarefa de juntar os cacos um por
um para que à noite o mosaico estivesse mais uma vez pronto
na minha cabeça.
- Maria, vou ser varredor na Alemanha. Ganhar em marcos.
- Acho que não deves. Não gostas de lá.
Eu a beijei e ficamos quietos, tomados de um carinho sem saída.
Sua voz perdeu a agitação:
- Tu acabaste meu quadro?
Era um retrato dela que eu prolongava indefinidamente.
- Não ainda.
- Tu não gostas de mim.
- Gosto.
- Não gostas.
- Gosto sim.
- Então beija-me.
Obedeci.
- Vou-me embora. Vê se dormes mais cedo!
Fiquei sentado, ouvindo os passos dela desaparecerem na escada
e a fitar a luz da cidade pela vidraça da janela. Depois
fui ao armário, peguei o pão, o queijo e o resto
do salame e fiz dois sanduíches. Mastigava sem pensar em
nada.
(Publicado em Assim Escrevem
os Paranaenses.
São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1978. Org.: Domingos Pellegrini
Jr.)
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