Correio Braziliense
Brasília, 5 de março de 2005
A sedução da escrita
Em O fotógrafo, Cristovão Tezza realiza radiografia precisa de uma classe média atordoada e indecisa
Adriana de F. B. Araújo
A tradução do pensamento em escrita é o grande desafio da arte de escrever. Essa seria apenas uma frase de efeito comum em oficinas literárias se não sintetizasse com perfeição esse último e primoroso romance de Cristovão Tezza, O fotógrafo .
A exploração do pensamento sempre existiu na literatura mas na década de 1920 com James Joyce e Virginia Woolf alcançou um nível de engenho e arte jamais visto. Entre nós, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles foram os grandes nomes da prosa centrada no pensamento. Tezza, neste O fotógrafo, se insere nesse filão com uma belíssima realização.
A novidade de O fotógrafo está no fato de que o diálogo interior é concebido a partir de dois pontos de vista numa mesma consciência. Acontece a todo momento uma atualização do sujeito frente ao efeito do olhar dos outros ou até de si mesmo em circunstâncias mais radicais. É estonteante a descentralização da voz narrativa que vive um processo dinâmico de manifestação.
A história se passa em um dia, e os acontecimentos não passam de banais, de modo que a densidade do texto não está na ação narrativa, embora pequenas suspensões alimentem a curiosidade do leitor, o forte do romance está na multiplicidade de pontos de vista que fazem do leitor um pequeno deus vendo por fora (o romance é narrado em terceira pessoa) o que os personagens trazem por dentro no mais íntimo.
Os traços característicos da linguagem de Tezza como a fluidez da linguagem oral, o requintado humor e a delicada e exímia composição de diferentes tons e temperaturas estão presentes, embora o autor apareça nesse romance como que reinventado. A história, que se passa em pleno ano eleitoral, 2002, gira em torno de um fotógrafo que foi contratado para tirar fotos secretas de uma jovem, Íris. Preso a um casamento já acabado, ele mergulha na sua câmara escura à procura de satisfação. Lídia, sua esposa, pertence ao mundo acadêmico de Letras e se apaixona por seu professor, Duarte, que é marido de Mara, analista de Íris. Intimamente ligados, os personagens elaboram sua visão de mundo a partir dos mesmos estímulos que resulta numa radiografia precisa e bem elaborada de uma classe média atordoada e indecisa.
O cotidiano limitado e sem graça é, como sempre, tomado por Tezza sem concessões. Numa engenhosa exploração da vida do dia-a-dia com todas as suas pequenas alegrias e muitos sofrimentos, Tezza devassa tudo desde casamentos frios que seguem por inércia a relações entre pais e filhos destroçadas e mudas.
A incursão pelo mundo acadêmico de Letras é uma delícia para aqueles que transitam no meio. Numa passagem, o arrogante professor de literatura metido a sabe-tudo, Duarte, discute a representação da consciência (grande centro do romance). Copio a seguir esse trechinho:
“A representação da consciência, ele se atropelou, mais ansioso, ao mesmo tempo em que procurava uma luz que se acendesse em alguma janela da cidade escura, mas as luzes agora só se apagavam, o jogo da madrugada, como ele disse numa aula que ninguém entendeu, e era tão nítido: a representação da consciência é o maior mistério da linguagem literária, ele disse algo assim, porque a representação, como tal, deve ser reconhecível, e nós pensamos em cacos; a representação mimética, ele escreveu no quadro, ao pé da letra é ilegível, e afinal a própria idéia da pura mimese é uma fraude..” (p.187)
E a sedução da escrita é isso aí mesmo: o desafio de organizar o pensamento que é múltiplo, circular e simultâneo numa estrutura que é linear e sucessiva como a escrita. E a fatura do professor arrogante aparece escancarada: sua aula é um “diálogo de surdos”. Esse romance fascinante não deve passar em brancas nuvens.
Adriana de F. B. Araújo é doutoranda em teoria literária pela UFRJ e escreveu dissertação de mestrado sobre Uma noite em Curitiba,
de Cristovão Tezza, pela UnB.
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