A onisciência em ruínas
Folha de S. Paulo, 08/05/2010

Senhores e criados e outras histórias, de Pierre Michon

Livro de Pierre Michon traz o sopro do espírito do tempo, mas também uma sólida referência biográfica

CRISTOVÃO TEZZA

“Criamos muita resistência desde que sabemos que toda a linguagem mente”, diz o narrador de “Vida de Joseph Roulin”, primeiro conto da coletânea “Senhores e criados e outras histórias”, do escritor francês Pierre Michon. Essa frase sintetiza a crise da linguagem do século 20, quando enfim se descobriu, ou se concebeu, para ser mais fiel ao conceito, que as linguagens não são inocentes vestimentas das ideias e das coisas, mas máquinas subjetivas e insidiosas de criar a realidade. A ficção, até então encastelada no estatuto poético, começa a descer ao chão, como um “modo de ver” tão bom quanto qualquer outro, inclusive o da teoria. Nessa nova terra, Kafka e Heidegger são irmãos de sangue.

Talvez nenhuma literatura tenha se entregado tanto a essa utopia, afinal pós-moderna, quanto a francesa, num movimento simbólico de que Roland Barthes foi o papa. O livro de Pierre Michon, originalmente publicado em 1988, traz o sopro desse espírito do tempo – mas mantém em cada linha uma sólida referência biográfica, no que esse termo tem de concreto.

Em “Vida de Joseph Roulin”, o narrador apropria-se da cabeça do empregado dos correios de Arles que serviu de modelo a uma série célebre de retratos feitos por seu amigo Van Gogh. Há uma minúcia de detalhes fiéis do que se sabe da história real dessa amizade, mas todos são tratados a um tempo com a agudeza do comentário ensaístico e o impulso da criação do personagem; o Joseph que emerge do texto é uma interpretação ficcional subjetiva que fica a anos-luz do pachorrento “romance histórico”.

Há como que uma onisciência em ruínas que avança recolhendo os cacos de suas impressões inseguras. Todos os personagens seguintes são “reais”; os pintores Goya, Watteau, um discípulo de Piero de la Francesca e Claude Lorrain vão sendo flagrados de viés por alguém próximo que tateia analiticamente os sentidos possíveis da memória histórica. Há uma opção romântica pelos artistas “fora de eixo”, de que o belo conto “Confia nesse sinal”, relatando a troca de um porco por um quadro de São Martinho de um discípulo medíocre de Piero de la Francesca, é um exemplo sensível, como se o sentimentalismo do século 19 contemplasse a dureza fatalista do século 15.

A intenção subjacente do ensaio transparece; a obra de Michon tem uma curiosa semelhança de olhar e sintaxe com “O sequestrado de Veneza” (Cosac Naify, 2005), estudo de Sartre de 1964 sobre o pintor Tintoretto, uma tentativa de compreender as motivações mais subjetivas do mestre veneziano. Sim, a linguagem mente, e o movimento francês parece que lutou, palavra a palavra, para fazê-la confessar o que teimosamente esconde. Se essa metafísica relativista da linguagem se provou má ciência, pelo menos terá criado boa literatura, como nos contos de Michon.


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