O Brasil de Jorge Amado
Folha de S. Paulo, 24/04/2010

De como o mulato Porciúncula descarregou seu defundo; As mortes e o triunfo de Rosalinda; O milagre dos pássaros, de Jorge Amado

Jorge Amado representa nação que ainda sonhava em fundir o universo urbano com a mitologia rural

CRISTOVÃO TEZZA

DURANTE MEIO século, Jorge Amado foi o maior formador de leitores de literatura adulta no país. O Brasil se espelhava nele; em suas obras de temática política e social, Jorge Amado antevia um país utópico-socialista em que o Estado teria alma, tal como a massa dos brasileiros continua a sonhar, e em suas obras-primas de imaginação e costumes (como "Gabriela, Cravo e Canela" e "Dona Flor e seus Dois Maridos"), deu forma viva a uma visão de Brasil que há mais de cem anos vinha tentando se encontrar no caldeirão da nossa cultura.

A miscigenação brasileira, caso único no mundo, se não recebeu ainda uma clara ou hegemônica formulação política ou mesmo teórica (depois de Gilberto Freyre), certamente tem na literatura de Jorge Amado a sua mais completa realização ficcional. E igualmente completa do ponto de vista formal: cada frase de seu texto, com sua sintaxe de bravatas, seu sincretismo retórico, seu rompimento de fronteiras e sentidos, põe as coisas díspares do mundo a serviço de uma narração totalizante que enquadra toda diferença na moldura de mitos populares.

No caso de Jorge Amado, pode-se comprovar o todo pela parte, pelo DNA de seus raríssimos contos, três deles agora relançados numa bela edição em volumes ilustrados e comentados -"O Milagre dos Pássaros", "As Mortes e o Triunfo de Rosalinda" e "De como o Mulato Porciúncula Descarregou seu Defunto".

Os títulos mesmos já se integram em sua utopia narradora, como se Jorge Amado cantasse sempre o mesmo livro em diferentes formas; para ele, a própria distinção entre romance e conto é irrelevante, sendo essa outra fronteira que não resiste à sua voz.

Do mulato Porciúncula casando com sua noiva morta, passando pelo monólogo do assassino de Rosalinda e subindo o adultério aos céus com um saboroso milagre dos pássaros, encontramos uma literatura que cria, canta e afirma uma utopia brasileira como nenhum outro autor foi capaz. Jorge Amado representa o momento único de uma nação que ainda sonhava em fundir o universo urbano com a mitologia rural.

Como todo épico, seu narrador centraliza o mundo colocando-o em praça pública e em altos brados -não há intimidade em Jorge Amado que não seja uma expressão coletiva. E não há diferença que não acabe amansada pelo seu turbilhão narrativo, em que mortos e vivos, letrados e ignorantes, prostitutas e mães, retórica elevada e coloquialismo, preciosismo e palavrão, cornos e casanovas, vão todos se fundindo num painel carnavalesco. A paródia perpétua e devoradora de sua linguagem mantém sempre um eixo de valor positivo, alegre e otimista; é a única fronteira que Jorge Amado respeita, e que jamais ultrapassou.


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