Literatura e cinema
Folha de S. Paulo, 27/03/2010

Chéri, de Colette

Aqui podemos perceber a distância entre uma simples história de amor e a crueldade da boa literatura

CRISTOVÃO TEZZA

A CLÁSSICA disputa entre o que se perde e o que se ganha nas adaptações para cinema de obras literárias vai encontrar em "Chéri" um mote de conversa, antes divertida que séria, porque, é claro, se trata de linguagens e modos de percepção bastante diferentes.

Quem viu o filme, dirigido por Stephen Frears, com Michele Pfeiffer no papel principal, assistiu a uma charmosa história de amor, com toques picarescos, entre uma cortesã e um adolescente, em que a belle époque francesa é reviviva em toda a sua graça e colorido, em composições impecáveis.

Naquele início do século 20, a história parecia ter estacionado na livre felicidade dos novos tempos. O livro, entretanto, contando exatamente a mesma história, tem outro tom.

A narração acompanha a história de Léa, uma mulher que enriqueceu na prostituição e que, atravessando os 40 anos, comete um erro imperdoável no seu ofício: apaixonar-se. O objeto de seu amor é "Chéri", um ocioso querubim, filho de outra cortesã igualmente bem de vida.

Nesse último suspiro simbólico da nobreza francesa, de que a vida fácil é uma caricatura maravilhosa, todos conhecem o "duro e penoso ofício de parasita", e a linguagem do cinismo mantém vivos os lampejos da lucidez.

Publicado em 1920 por Sidonie-Gabrielle Colette (1873-1954), uma feminista de primeira viagem cuja vida rocambolesca incluiu três casamentos convencionais e vários casos lésbicos, e que ao morrer recebeu funerais de Estado, "Chéri" deixa transparecer em suas aventuras um impiedoso olhar sobre a velhice e sobre o vazio de um tempo que sequer pressentia o terremoto que estava por vir.

O colorido da belle époque se transforma, em suas mãos, num atravancamento de móveis, vestimentas, joias e objetos, no meio dos quais figuras patéticas se movem, se deitam e sobrevivem. "Somos órfãos" - a noiva de Chéri, pivô da intriga romanesca, dirá num momento, como se falasse por todos.

A sintaxe quebradiça de Colette, em que a frase avança e volteia ao sabor de percepções agudas, vai tirando a casca da aparência com a volúpia de um Dalton Trevisan: a baronesa dissimulava "um rosto grande que a velhice virilizava de dar medo. Suas orelhas eram cabelo puro, um matagal no nariz e no lábio, falanges hirsutas". Ou: "A velha Lili arfava (...), a boquinha de velha, com os cantos cheios de rugas, entreaberta". Tudo é aparência - e a densidade de Léa está em não se iludir quando a razão tenta dar sentido ao tropeço tardio de seu afeto.

No fim, resta-lhe comprar "todos os bibelôs necessários para (...) disfarçar o monstro - a mulher velha". Em "Chéri", o texto, podemos perceber a distância entre uma simples história de amor e a crueldade da boa literatura.


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