Princípio de realidade
Folha de S. Paulo, 13/03/2010

A balada do café triste, de Carson McCullers

No isolamento rural de seus personagens, o narrador se comporta como um vizinho deles, atento e tolerante

CRISTOVÃO TEZZA

A HIPÓTESE de que boa literatura só se cria nos piores ambientes pode encontrar um bom argumento no sul dos Estados Unidos, no espaço geográfico conhecido como "cinturão bíblico".

Região escravagista que perdeu a guerra civil, o sul permaneceu por mais de um século mantendo a segregação racial, o fundamentalismo religioso, o isolamento cultural e o arcaísmo econômico.

E justamente lá surgiu uma constelação de grandes escritores que extraíram daquele mundo uma espécie de alma secreta americana.

William Faulkner, Flannery O'Connor, Truman Capote e Tennessee Williams são alguns deles -aos quais se acrescenta Carson McCullers (1917-1967), que marcou época ao publicar, aos 23 anos, "O Coração É um Caçador Solitário", romance que é um painel dos efeitos da Grande Depressão.

Os textos de "A Balada do Café Triste", agora relançados com tradução e apresentação de Caio Fernando Abreu, são uma boa introdução à sua obra. A novela que dá título ao livro tem os ingredientes clássicos da literatura do sul. Mergulhando no isolamento rural de seus personagens, o narrador se comporta como um vizinho deles, atento e tolerante; sente que há um toque incompreensível no que descreve, que precisa ser respeitado, mas sem reprimir o riso quando ele aparece.

A história gira em torno de Amélia, uma mulher rica, sovina e solitária de um vilarejo decadente, que acolhe em seu café um misterioso anão. O traço grotesco, frequente na literatura sulista, mantém uma fina tensão entre a graça e a tragédia.

Num momento, o ex-marido de Amélia volta da prisão, onde passou anos. Arma-se um embate que será terrível entre a mulher intratável e o incorrigível delinquente, num duelo que funciona como uma réplica literária e maravilhosa de um faroeste.

O olhar observador de McCullers -ou esse "princípio da observação" que é o toque crucial do realismo americano- está presente também nos outros contos, mesmo quando não tipicamente sulistas. No belo "Wunderkind" ("criança prodígio" em alemão), uma jovem virtuose não aguenta mais a tortura das aulas do implacável senhor Bilderbach e simplesmente abandona o piano: "Não posso nunca mais" - ao ar livre, vê a rua transformada pela balbúrdia de outras crianças. Em outros contos, o cenário urbano é dominante, como nos ótimos "O Transeunte", o encontro casual de um homem com sua ex-mulher, e "Um Dilema Doméstico", que aborda o alcoolismo feminino. No engraçado "Madame Zilensky e o Rei da Finlândia", o diretor da faculdade custa a acreditar na mitomania da misteriosa madame, a professora de música recém-contratada - boa metáfora para o contraste entre o senso de realidade americano e a fantasia da arte europeia.


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