Humor e paixão
Folha de S. Paulo, 27/02/2010

Gentlemen, de Klas Östergren

Sob o olhar de Östergren, o mundo de seu amigo já é um mundo passado, mas que se revive com a leveza do humor

CRISTOVÃO TEZZA

EM 1978 , um jovem escritor sueco chamado Klas Östergren, sem dinheiro, mas cheio de planos, conhece o músico Henry Morgan, de quem aceita a oferta para partilhar seu apartamento. Enquanto o escritor tenta enfrentar o livro pelo qual já recebera adiantamento, Henry pretende compor sua obra magna, e dali nasce daquelas amizades densas que dão a medida de uma vida inteira. E o leitor se desloca do próprio Klas, o narrador, para a incrível e irresistível história de Henry e de seu irmão, o poeta Leo Morgan, que serve como um painel da transformação da Europa e do mundo dos anos 1960 em diante.

Esse é o roteiro do romance "Gentlemen". Com toques autobiográficos (a partir do próprio nome do narrador), foi publicado na Suécia em 1980 quando o autor tinha apenas 25 anos. "Gentlemen" é uma obra que mergulha no quadro mental da geração dos anos 60, quando a Segunda Guerra Mundial já começava a se transformar em memória de velhos, a Guerra Fria era uma sombra terrível e um misto de grande prosperidade, revolta política e otimismo poético erguia os andaimes de um novo tempo.

Nascido em 1955, Östergren era apenas uma criança nos anos 60, mas o retrato que ele faz do período, acompanhando as peripécias dos irmãos Morgan, filhos do "barão do Jazz" sueco, tem a sinceridade cativante de quem vive o mundo pelos livros, mas não perde o sentido de realidade, que é o seu eixo narrativo.

Henry Morgan apaixona-se por Maud, uma loira fatal saída de algum policial noir, que por sua vez tem um caso com o misterioso e onipresente senhor WS, com quem Henry reparte a mulher, as cigarreiras e as gravatas. Seu irmão Leo Morgan foi um gênio poético precoce, que acaba sendo destruído ao tentar fazer da própria vida a sua obra.

Os signos da época vão pontuando as páginas -Vietnã, Sartre, Muro de Berlim, Muhammad Ali, Beatles, Salvador Dali, drogas, Maio de 68, jazz, muito cigarro e muita bebida.

Enfim, nada que um brasileiro médio do período não tenha sentido com a mesma intensidade, ainda que com os sinais trocados: para os jovens suecos, os russos eram realmente uma ameaça e o Muro de Berlim, uma vergonha; enquanto eles viviam numa monarquia democrática, nós sofríamos uma ditadura militar.

Henry Morgan, o verdadeiro protagonista do livro, vai simbolicamente se deixando contaminar pelas marcas do tempo, e seu amor pelas mentiras são como que uma busca desesperada de referência poética. Sob o olhar de Östergren, que pertence "a uma geração que padece de um inadequado sentimento de dever", o mundo de seu amigo já é um mundo passado -mas que se revê e se revive com a leveza do humor e a força da paixão.


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