Fábulas distópicas
Folha de S. Paulo, 13/02/2010

Corrida selvagem, de J.G. Ballard

J.G. Ballard toca nos temas mais comuns da cultura de massa, imprimindo-lhes um viés original

CRISTOVÃO TEZZA

NO BRASIL , J.G. Ballard (1930-2009) é mais conhecido por dois filmes adaptados de seus livros -"Crash" e "O Império do Sol"- do que por sua obra, o que é pena. Nascido numa área internacional de Xangai, na China, sua formação é uma colcha de retalhos: chegou a viver num campo de prisioneiros durante a Segunda Guerra, formou-se em medicina e se tornou psiquiatra; mais tarde, engajou-se na Força Aérea Britânica. A partir dos anos 1960, concentrou-se na literatura. "Corrida Selvagem", uma breve novela de 1988, agora editada entre nós com uma ótima apresentação de Antonio Gonçalves Filho, dá uma medida de seu universo literário, que toca nos temas mais comuns da cultura de massa, da violência à sofisticação tecnológica, imprimindo-lhes, entretanto, um viés original.

Um condomínio de milionários próximo de Londres sofre uma brutal e misteriosa sequência de crimes -o "massacre de Pangbourne". O livro transcreve os diários de Richard Greville, psiquiatra consultado para explicar o inexplicável -32 adultos assassinados (fuzilados com tiros na nuca, eletrocutados na banheira, esmagados na garagem pelo próprio Porsche, e assim por diante), enquanto todas as crianças do condomínio desapareceram sem rastros.

Aparentemente, mais um tema para um filme violento de trama policial. A linguagem documental do texto parece nos levar a essa direção; tudo é imediatamente visível na frase de Ballard. Mas pouco a pouco o realismo chapado vai dando sinais de sua face oculta, à medida que a verossimilhança perde relevância em favor do conceito que dá brilho à história: o discreto horror da segregação da riqueza e da cultura do isolamento social, que a narração desenha em pinceladas irônicas. O crime seria obra de um bando de revolucionários fazendo justiça? O psiquiatra enumera as hipóteses levantadas pela polícia, até as mais absurdas, mas não é o fio da meada que interessa de fato a Ballard. O atento psiquiatra anota em seu caderno:

"Os moradores haviam eliminado o passado e o futuro, e apesar de toda a sua atividade, existiam num mundo civilizado e sem acontecimentos. Num certo sentido, as crianças tinham dado corda nos relógios da vida real". Seriam as crianças os assassinos? Imaginar que os filhos "estavam sufocando com a incessante dieta de amor e compreensão que lhes era empurrada goela abaixo" e, "desesperadas pela brutalidade das emoções", resolveram dar o troco aos pais, é desses oximoros maravilhosos da ficção de Ballard, o toque de ironia que é a um tempo o poder do riso e da metafísica. O seu realismo é puramente instrumental; Ballard aproveita-se dos clichês contemporâneos e seus ideogramas para compor fábulas distópicas carregadas de ambiguidade.


voltar