Modernidade bucólica
Folha de S. Paulo, 16/01/2010

Hotel Mundo, de Ali Smith

Romance "Hotel Mundo", da escocesa Ali Smith, oferece ao leitor um bom exercício de construção de sentido

CRISTOVÃO TEZZA

TODA NARRATIVA é um olhar articulado sobre o mundo, que se define do detalhe do vocabulário à arquitetura do tempo e do espaço. Ao ler, vamos como que reconstruindo o olhar e os sentidos do escritor, agora sob o nosso ponto de vista e nossos sentidos, para torná-los de algum modo familiares, negociando linha a linha empatias e afastamentos.

O romance "Hotel Mundo", da escocesa Ali Smith, oferece ao leitor um bom exercício de construção de sentido, porque a cada página o texto parece recusar um quadro estável de referência. O eixo da história é a estranha morte de uma funcionária de um hotel que entra num pequeno monta-cargas, que se rompe.

A partir desse fato, uma colagem de cenas: a alma da funcionária conversando com seu corpo; uma mulher sem-teto aceita a oferta da recepcionista de passar a noite fria gratuitamente num dos quartos do hotel; em outro quarto, uma jornalista faz reflexões fúteis e, ao sair no corredor, encontra a irmã da menina morta que, disfarçada de funcionária, abre o buraco do pequeno elevador que levou sua irmã; a sem-teto sai à rua, acompanhada pela jornalista, o único ser decididamente "negativo" do livro.

Na última parte, um olhar genérico sobrevoa a cidade com um toque de poesia e tolerância até focar uma relojoaria, onde a balconista espera inutilmente que a menina morta venha buscar seu relógio.

Como estrutura narrativa, estamos diante da estética da coincidência, uma das marcas da virada do século (no cinema, vide "Babel"); sugere-se uma secreta ligação entre fatos simultâneos que acontecem por acaso, mas a narração não arrisca lhe dar sentido, como se a pura percepção sensorial de instantes e fragmentos fosse eloquente por si. Como de fato não é (as coisas não falam), o que acaba costurando as partes do romance, agora no mundo dos valores, é o que podemos chamar de estética adolescente, uma espécie de encantamento suave e inocente que a ausência de sentido parece sugerir. Nesse vazio que apenas respira, objetos e pessoas habitam todos o mesmo painel, sob o mesmo estatuto.

No mundo adolescente que dá vida ao livro, o sofrimento, ainda que intenso, não tem a dimensão da tragédia e escapa nas beiradas da autopiedade poética.

A fragmentação narrativa, um sinal moderno, ressalta-se ainda mais pelo registro coloquial (aliás traduzido com rara felicidade), com a sintaxe ao sabor da percepção, não da explicação. Mas não se trata de um universo inteiro esgarçado -a recorrente ironia do sentido implícito em um "Hotel Global", a caricatura da jornalista (incapaz de perceber na sem-teto a sua condição social) e um certo deleite com a província escocesa amarram, talvez a contragosto, uma visão de mundo bucólica bastante nítida.


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