A lógica do horror
Folha de S. Paulo, 05/12/2009

Libertação, de Sándor Márai

"Libertação", de Sándor Márai, é uma sensível ficção sobre um mundo vindo abaixo e o futuro se erguendo

CRISTOVÃO TEZZA

NO SÉCULO 20, o Leste Europeu sofreu até o limite uma sucessão de traumas políticos, ditaduras e tragédias militares. Países artificiais se erguiam e se desmontavam ao sabor de planos totalitários e fronteiras étnicas, culturais e religiosas impermeáveis.

O horror desses ódios que se protegiam e se alimentavam nas burocracias de Estado ganha a sua mais alta intensidade dramática nos estertores da guerra, quando ninguém sabe "com exatidão o que a hora seguinte traria".

O breve romance "Libertação", do húngaro Sándor Márai (1900-1989), publicado em 1945, quando a Segunda Guerra Mundial terminava, é uma sensível monografia ficcional sobre as poucas horas em que um velho mundo vem abaixo e o fantasma do futuro começa a se erguer do pó. A intuição sombria do escritor não falhou: sob o comunismo que se seguiu, Márai teve sua obra integralmente proibida, e em 1948 saiu da Hungria para nunca mais voltar.

Na "terceira noite depois do Ano-Novo", na Budapeste ainda nazista de uma Hungria cooptada pelos alemães, a jovem Erzsébet luta por salvar seu pai, um matemático que protegera alguns judeus, da perseguição da polícia política. Consegue encontrar alguém que o "empareda" com outros fugitivos, e ela mesma se vê, mais tarde, abrigada num porão em que uma inverossímil mescla de cidadãos tenta simular que não está acontecendo nada, enquanto os alemães recuam, os russos se aproximam e as bombas explodem.

O narrador se apropria da consciência de Erzsébet para refletir, minuto a minuto, sobre o que está acontecendo, no desespero de dar algum sentido àquele mundo em ruínas: "Não se podia apreender com a razão que pessoas continuassem [...] exterminando vidas, sem finalidade, no último instante [...]. A loucura não tem finalidade".

Entre as figuras que emergem da escuridão, está a mulher que relembra o elegante médico alemão que, como um maestro, a um gesto de braço decidia entre a morte e a vida; em outro momento, o até então confiável zelador do porão "vende" um protético judeu. Pouco depois, ouve-se um tiro. Um diretor dos Correios, "com a voz trêmula", reconhece: "Eu sempre lhe disse que essas coisas eram exageros...". "Eles não são mais pessoas." Erzsébet, entretanto, sabe que "tudo era falação vazia, palavras vãs".

Diante do avanço do Exército Vermelho, ela decide ficar ali. Um jovem soldado russo que adentra o porão com um fuzil e uma lanterna teria tudo para representar o papel de um herói de guerra, mas a realidade é muito mais dura, como ela logo percebe ao tentar trocar palavras com ele, num torturante diálogo de surdos em que só o que se revela é a perspectiva do estupro.

Mais tarde, ela dirá em voz alta: "Parece que estou livre".


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