Desencontros
Folha de S. Paulo, 21/11/2009

A solidão dos números primos, de Paolo Giordano

Em "A solidão dos números primos", Paolo Giordano aborda situações limítrofes sem cair no sentimentalismo

CRISTOVÃO TEZZA

ESCOLHER SITUAÇÕES limítrofes como objeto de ficção -deficientes mentais e físicos, doenças incuráveis, sociopatias ou mesmo simples crianças pelas quais se vê o mundo- é operação arriscada. É grande a chance de o texto resvalar para casos médicos exemplares, manuais de sobrevivência ou sentimentalismo derramado que se transforma na alegria do cinema de massa. Mas às vezes a expectativa se quebra e acontece boa literatura. É o caso de "A Solidão dos Números Primos", romance de estreia do italiano Paolo Giordano, de 28 anos.

Em sete momentos, o livro conta uma história de desencontros que giram em torno de Mattia e Alice, com dois pontos de partida traumáticos. Quando menino, envergonhado da irmã deficiente mental, Mattia resolve deixá-la esperando numa praça em vez de levá-la junto a uma festa de aniversário; ao voltar, ela desapareceu. Essa chave moral, aqui desabada nas costas de uma criança, é um forte tema literário da consciência do indivíduo moderno. Podemos encontrá-la desde o dilema de "Lord Jim" (1900), de Joseph Conrad, até no recente "Reparação" (2001), de Ian McEwan. Nessa duríssima solidão ética, a pergunta que a ficção tenta responder é se a vida pode ser recomposta nos seus próprios limites, sem recorrer à tolerância sentimental do narrador e a suas armas românticas de artifício moral ou religioso.

O outro eixo narrativo, Alice, é uma criança esmagada pela autoridade do pai. Obrigada a esquiar, o que ela odeia, sofre um acidente que a deixará aleijada. Anoréxica, de uma magreza assumida como um escudo contra o mundo, ela crescerá sem companhia -ou como um outro "número primo", na imagem de Mattia, que vem a se tornar um matemático de gênio, na mesma intensidade com que se mostra incapaz de manter uma vida social mínima. Refugiando-se nas relações numéricas e espaciais abstratas com que desenha o mundo, acaba por superar seu desejo de automutilação -a palma de sua mão é uma ruína de cicatrizes.

O terceiro personagem importante é fugaz -Denis, que pela inclinação homoerótica parece dar ao livro apenas um equilíbrio politicamente correto e não uma função real e, por isso mesmo, some da história de um ponto em diante. Mas a distante relação entre Mattia e Alice se sustenta compassadamente do começo ao fim. A história é contada por um frio narrador onisciente. Sente-se nele, em escala menor, a sombra de uma prosa italiana que tem em Alberto Moravia (1907-1990) seu grande mestre. A um tempo discreta e implacável, atenta tanto ao indivíduo quanto às forças externas, tem o olho agudo para as "minúsculas fendas que aparecem num relacionamento onde a vida, mais cedo ou mais tarde, consegue introduzir uma alavanca e abrir caminho".


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