O álibi autobiográfico
Folha de S. Paulo,24/10/2009

A autobiografia de Alice B. Toklas, de Gertrude Stein

Autora se sente livre para falar de si mesma como objeto incondicional de admiração

CRISTOVÃO TEZZA

A AMERICANA Gertrude Stein (1874-1946) é um desses casos não tão raros de autores que são muito mais conhecidos como personagens do que como escritores. Vivendo desde 1903 na França e convivendo com alguns dos mais importantes artistas do século 20 -Picasso e Matisse entre eles-, durante anos ela fez de sua casa em Paris um salão de efervescência intelectual.

Além disso, ficou célebre também por manter até o fim da vida uma relação amorosa com sua conterrânea Alice B. Toklas (1877-1967). No caso de Gertrude Stein, o peso biográfico acabou por criar uma mitologia que oculta a obra -ou, talvez mais precisamente, em que se oculta a obra. "A Autobiografia de Alice B. Toklas", assinada por Gertrude Stein, recém-lançada entre nós com posfácio de Silviano Santiago, reforça propositalmente essa neblina entre obra e personagem, numa rede complexa de estratégias romanescas.

A ironia do título, uma autobiografia escrita por um outro, é também o "crime perfeito" da narração, o álibi do autor. Deslocando o ponto de vista narrativo para alguém que, de fato, não tem voz, mas uma profunda e amorosa cumplicidade, o autor se sente livre para falar de si mesmo como objeto incondicional de admiração. Não estará mentindo, pois nesse aspecto a história de ambas não tem ambiguidade. Assim, amparada eticamente, ela vai erguendo seu próprio retrato como gostaria de ser vista.

Coerentemente, a gramática do texto assimila a ingenuidade de sua suposta autora, o que é um outro álibi para "não falar". O tom circular da oralidade perpassa as lembranças da falsa Toklas, cujo deslumbramento pelos novos gênios da Europa parece antes um bem-humorado mexerico de vizinhos que uma análise artística. A estratégia narrativa permite a Gertrude Stein essa liberdade.

Nada tem peso -a Primeira Guerra Mundial lembra mais um transtorno animado do que a tragédia que realmente foi. É com um leve e divertido espírito de turismo que acompanhamos as saborosas peripécias dos personagens e das figuras reais que as povoam. Durante 30 anos trepidantes, Gertrude Stein vê a si mesma em especial proeminência, como a introdutora da modernidade na literatura. Em um momento, seu ideário artístico transparece numa frase: poesia e prosa, sem emoção, "devem consistir numa exata reprodução de uma realidade seja externa seja interna".

Esse positivismo estético, que de algum modo está na raiz do niilismo pós-moderno que corrói a responsabilidade narrativa, transformando o autor numa figura apenas gramatical, acaba por dar o tom da autobiografia, em que pequenos fatos se costuram como que ao acaso de uma conversa solta, transformada num documento curioso e precioso de uma época.


voltar