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Contos Completos, de Virginia Woolf
Correio Braziliense, Suplemento Pensar
Brasília, sábado, 28 de maio de 2005
Cristovão Tezza
Virginia Woolf (1882-1941) inscreveu seu nome na literatura no século 20 como a autora de romances como Orlando, As ondas e Ao Farol, com os quais ajudou a abrir as comportas tradicionais do ponto de vista narrativo e afirmou-se como a primeira grande voz feminina da literatura moderna. Marcante como romancista, é entretanto menos conhecida como contista. A publicação brasileira de seus “Contos Completos”, com tradução de Leonardo Fróes e fixação de texto e notas de Susan Dick, é uma boa oportunidade para conhecê-la neste gênero. A edição contém generosas informações de rodapé, dividindo o conjunto em quatro partes, apresentadas em seqüência cronológica, de 1906, o primeiro texto, ao último, de 1941, o ano em que uma crise de depressão levou-a ao suicídio.
Se é verdade que, na arte literária, um pequeno texto já revela o DNA da obra inteira, encontraremos neste volume um retrato da personalidade narrativa de Virgina Woolf, visível desde as suas primeiras experiências. E o conjunto dos contos – um gênero cujo artesanato “clássico”, digamos assim, claramente não era o dela, quando a comparamos por exemplo com a obra de Katherine Mansfield, sua contemporânea de formação – denuncia em todos os aspectos os traços que fizeram de Woolf uma grande romancista. Mesmo na estrutura mais ou menos convencional de seus primeiros momentos, como em “Phyllis e Rosamond”, narrando episódios pitorescos de duas irmãs casadoiras, pressentimos já a incidência de alguns de seus temas: a condição feminina, a sufocação cotidiana de uma pequena (ou decadente) aristocracia urbana, o clássico contraste entre o ser e o parecer expresso melancolicamente nas miudezas dos gestos e das coisas e, mais que tudo, a ausência de um eixo de valor a partir do qual alguma realidade possa se erguer com estabilidade. Assim, os seus contos são mais propriamente fragmentos de romances, atentos exercícios de leitura do mundo, em que, por via dupla, o mundo se esfarela e com ele o seu olhar. Aliás, muitos contos retomam ou antecipam personagens de seus romances, como Mrs. Dalloway.
O olhar de Virginia Woolf, a sua inquietante difusão, é o seu segredo literário: “Mas quando o eu fala com o eu, quem é que fala?”, pergunta-se o narrador num momento, em “Um romance não escrito”. Há uma angustiante incapacidade de se apreender o suposto mundo real e lhe dar alguma nitidez externa. O chamado narrador onisciente, o sabe-tudo que constrói uma narrativa como quem ergue solidamente uma casa, começou a ser solapado pela sintaxe tateante de Henry James e na virada do século 20 encontrou em Joseph Conrad (por exemplo) o arquiteto de grandes aventuras subjetivas, abrindo caminhos na literatura moderna. Ulisses, de James Joyce, será a grande síntese desta crise do narrador, levada quase ao extremo de seus limites formais. Em Virgínia Woolf, entretanto, a crise da onisciência narrativa encontra uma espécie de ninho seguro, refugiando-se na extensão mesma do olhar físico e amarrada firmemente na subjetividade das personagens. Podemos dizer que na aventura romanesca de Woolf, nada entra e nada sai: “Estamos todos aqui, disse ela bruscamente, engaiolados nesta sala abafada”, dirá um personagem, como se ilustrasse o mundo da autora.
O fluxo de consciência que emerge de seus contos não se entrega nunca à experimentação sintática mais radical, e tem contornos sociais precisos – nesse sentido, Virgina Woolf é uma “realista”. Podemos até entrever traços de crítica social e de uma sutil apreensão das ironias da sociedade de classes – em “Cigana, a vira-lata”, a personagem Bagot, para ilustrar o dilema de ter de se livrar de um cachorro, compara candidamente: “Mas vejam só por este lado. Vocês têm duas empregadas, digamos; e não podem ficar com ambas; uma está certa de arranjar um lugar, mas a outra – não tendo como todo mundo dinheiro, pode encontrar-se, sem emprego, em dificuldades.”
A estranheza que normalmente ela evoca parece que nasce de sua teimosa recusa em escapar do detalhe: um caco de vidro (“Objetos sólidos”), as cores (“Azul e verde”), a mosca no pires (“O vestido novo”), um facho de luz (“O holofote”), as miríades de flores que povoam minuciosamente seus contos competem quase que em grau de igualdade hierárquica com todos os outros “fatos” dos contos. O olhar mergulha no detalhe e, dali, narrador e personagem, permeáveis um ao outro, avançam ao acaso das sensações, até voltarem ao ponto de partida – é como se o mundo literário de Virginia Woolf, do mesmo modo que o mundo em que ela viveu, não conseguisse mais reconhecer no espaço da vida uma referência firme capaz de ancorar, com alguma solidez, nossos sentidos.
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