Como viver - ou uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de respostas, de Sarah Bakewell

Revista Veja, 21 de março de 2012.


O homem inesgotável

Em Como viver, uma biografia de Montaigne por meios de suas ideias - aque nunca cessam de ser revistas e discutidas

Cristovão Tezza

Já se disse que uma obra clássica é aquela que nunca esgota o que tem a dizer, abrindo-se a novas interpretações a cada geração de leitores. Poucas obras se enquadrariam tão perfeitamente nesta definição quanto “Os ensaios” de Michel de Montaigne (1533-1592). O tranquilo pensador da região de Bordeaux que, encastelado numa torre, escreveu suas reflexões num dos séculos mais conturbados da história da França, sob o cisma político e religioso de protestantes e católicos, vem fascinando leitores e intrigando estudiosos durante 500 anos. No seu tempo, foi um best-seller – seus textos eram absorvidos, no espírito da Renascença, como espelhos edificantes da cultura clássica. Um século adiante, descobre-se que Montaigne não seria assim tão inocente, e Os ensaios entra para a lista dos livros proibidos do Vaticano, o que lhe dá um novo tempero. Mais tarde, admirado por Diderot, Montaigne se transforma num iluminista, defensor da razão, uma das influências do grande movimento filosófico que levou à Revolução Francesa. Ao mesmo tempo, apaixonou os ingleses; alguém chegou a dizer que Francis Bacon, o pioneiro proponente do método científico, seria o verdadeiro autor de Os ensaios. No século seguinte, o ideário romântico faz de Montaigne um de seus heróis, alguém que teria vivido intensamente já não pela frieza racional, mas segundo as suas emoções e a sua natureza. Do século 20 até nossos dias, busca-se recuperar o verdadeiro texto de Montaigne, que, como num palimpsesto, foi se fazendo por intermináveis acréscimos, desafiando interpretações.

Essa figura incomum da história da inteligência é objeto do livro “Como viver” (tradução de Clóvis Marques; Objetiva: 400 páginas; 39,90 reais), assinado pela inglesa Sarah Bakewell, ex-curadora de livros antigos e hoje respeitada biógrafa. “Como viver” é um trabalho maravilhoso de clareza, rigor acadêmico e concepção biográfica. Em vez de apenas seguir o rastro cronológico dos fatos, o livro formula em 20 capítulos as questões filosóficas cruciais, ligadas à vida cotidiana, que emergem d’Os ensaios. A partir desses tópicos (“questione tudo”, “desperte do sono do hábito” ou “seja comum e imperfeito”), que só na aparência lembram conselhos de autoajuda, a biografia acompanha todas as fases da sua vida, amarrando-as às circunstâncias políticas e religiosas do seu tempo. O resultado é fascinante: Montaigne nos surge como alguém de carne e osso, uma figura ambígua, aberta a interpretações complexas e contraditórias, e surpreendentemente próximo da sensibilidade contemporânea.

Herdeiro de uma propriedade que lhe garantiu uma sobrevivência tranquila, o próprio Montaigne foi de fato o seu primeiro biógrafo, pelo tanto que falou de si mesmo. Mas seria um engano imaginá-lo um nefelibata filosofando à margem do mundo (como às vezes ele mesmo gostava de se imaginar). Montaigne enfrentou ativamente todas as questões que infernizaram o século em que viveu. Ao nascer, foi criado pela ama de leite numa casa de camponeses; só aos dois anos retornou à família, quando então foi submetido a aulas de latim, sua primeira língua, por um preceptor alemão. Estudou direito e se tornou magistrado na corte de Bordeaux. Logo se iniciaram as violentas guerras civis que vão acompanhar sua vida como uma sombra, assim como os surtos de peste que varriam a Europa. Num deles, testemunha a morte de seu grande amigo La Boétie, um evento que o marcou para sempre. Correspondeu-se com o protestante Henrique de Navarra, que acabaria por se tornar um rei católico; viajou pela Suíça, Alemanha e Itália; ao voltar, foi eleito prefeito de Bordeaux. Em missão secreta a Paris, a favor da paz, acaba preso por um dia na Bastilha. Quando morreu, já era uma celebridade mundial.

Conceitualmente, Os ensaios refletem os valores clássicos das correntes céticas, estoicas e epicuristas da filosofia helenística, de um momento histórico em que os deuses pagãos perdiam sua força na sofisticada cultura da civilização romana, e o cristianismo ainda não havia imposto ao mundo sua influência avassaladora. Naquele período de três ou quatro séculos, o homem contemplava-se com uma desconfiada liberdade. A obra de Montaigne redescobre este indivíduo esquecido, recolocando-o no centro do mundo, depois de mil anos de silêncio. Formalmente, Montaigne não criou nenhum sistema filosófico – ele apenas conversa sobre si mesmo e seus próprios sentimentos, com uma simplicidade e um senso de observação direta desconcertantes. Tudo lhe interessa, das pedras do rim (mal que o levou à morte), aos índios tupinambás importados do Brasil que ele conheceu em Ruão, e sobre quem escreveu um ensaio (Dos canibais), que acabaria por se tornar uma espécie de manifesto multicultural para as gerações seguintes. Sua escrita parece não ter rumo; qualquer que seja o tema – o sono, a presunção, a educação das crianças – ele avança ao acaso como um blogueiro renascentista. Há um toque de romancista na sua linguagem. Antidogmático por instinto, parece sempre mais atento a picuinhas de uma conversa informal do que a tiradas retóricas ou grandiloquentes – “As viagens só me aborrecem por causa das despesas, sempre grandes demais para as minhas posses”, diz ele em um momento. Em outro ensaio, “Do arrependimento”, confessa: “Não creio que deva grudar, agora, um rabo de filósofo a um corpo de homem já gasto”. Como a biografia demonstra com nitidez, a história se encarregou de lhe dar uma dimensão que ele próprio, por princípio filosófico, recusava a si mesmo.


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