Bravo! LIVROS, nº4 – JULHO 2005
Edição especial da FLIP – Feira Literária Internacional de Parati

Alguém para correr comigo, de David Grossman

Nas ruas de Jerusalém

Para retratar a juventude de seu país, o israelense David Grossman mostra a vida numa cidade que está além da imagem de uma perpétua praça de guerra.

Por Cristovão Tezza

Para um leitor comum, Israel e suas cidades lembram imediatamente uma guerra interminável, às vezes incompreensível, e as imagens que nos vêm à cabeça são as de homens-bombas explodindo, mísseis perfurando prédios sem reboco, muros de separação se erguendo, tanques arrasando quarteirões, crianças desfilando armadas ao lado de figuras encapuzadas com metralhadoras à mão; às vezes políticos apertando as mãos em cerimônias tensas e inúteis. É possível escrever um romance com este pano de fundo sem que, de alguma forma, essas imagens tomem conta do livro? Na obra de Amoz Óz, elas estão lá, exigindo resposta, assim como nas incursões literárias de Philip Roth nesta região, como em Operação Shylock. Israel, parece, só pode ser entendido como uma perpétua praça de guerra, sangrada pela questão palestina.

Mas, por incrível que pareça – assim como deve ser incrível ao estrangeiro a idéia de que haja no Brasil algo mais que mulatas rebolando, tiroteios e massacres em favelas, crianças à venda, índios assassinados e arrastões nas praias – lá também existe vida “normal”, em que os problemas perdem seu tom exótico, exclusivo, e se encontram com os problemas universais da vida urbana e da modernidade, que, para o bem e para o mal, nos tornou a todos cidadãos do mesmo mundo. No romance Alguém para correr comigo, de David Grossman, encontramos este outro Israel, centrado no universo dos adolescentes urbanos e sua dura passagem para o mundo adulto, e os problemas que eles enfrentam no livro apenas perifericamente tocam naqueles símbolos poderosos que vemos na televisão todos os dias. De certo modo, seus personagens poderiam viver histórias semelhantes em Paris, Londres, São Paulo ou Nova York, e esse é um dos segredos do romance, o seu poder de transcendência.

Como um bom livro de aventuras – uma das visíveis filiações do romance de Grossman, que é jornalista e também autor consagrado de literatura juvenil – Alguém para correr comigo segura o leitor já pela primeira imagem: um jovem sendo praticamente arrastado por um cão nas ruas de Jerusalém. O tímido e sensível adolescente Assaf, em férias e com os pais viajando, em trabalho temporário na prefeitura, é encarregado de encontrar o dono de um cachorro perdido para multá-lo. A graça da situação e a empatia quase que imediata que se cria entre o menino e o cão serão o fio condutor do romance inteiro, aliás, fiel ao gênero, de leitura irresistível. É o cachorro – que ele descobre ser de fato uma cadela – que o conduz, ao longo de situações saborosas, como quando pára subitamente diante de uma pizzaria e Assaf se vê obrigado, pela timidez, a comprar uma pizza montada na hora e destinada à dona do cão. Pelas palavras do pizzaiolo, começa a desenhar a figura da pessoa que ele não sabe quem é e que deve encontrar.

Em contraponto, no tempo e no espaço, acompanhamos a adolescente Tamar, a dona de Dinka (nome da cadela) – alguém que tem a coragem de entrar numa barbearia e pedir para que lhe cortem completamente os cabelos, porque ela está prestes a mudar radical e perigosamente sua vida. Ela se acha feia, e vê-se mais feia ainda. Guarda seu diário e seus segredos numa mochila, que deixa num guarda-volumes; abandona a família e amigos e assume o projeto de se tornar uma cantora de rua (ela cantava num coral e tem uma voz maravilhosa), em troca de algumas moedas. Na verdade, ela quer salvar alguém, e o mergulho na vida da rua é uma tática de guerra, mas o leitor apenas vagarosamente vai descobrindo a chave de seu destino.

A aguda sensibilidade de David Grossman para a complexa realidade da vida adolescente, esta passagem difícil e sem forma da infância para o mundo adulto, a quebra errática do sistema de valores que nos formou para a criação difusa de um novo roteiro moral e existencial, é o ponto alto do romance, a sua consistência. A delicadeza, a sutileza, o lirismo e o humor com que o autor trabalha os dois personagens centrais, Assaf e Tamar, livra o romance do que poderia ser o seu descaminho puramente moralizante ou didático (o pecado mortal de certa literatura juvenil) e lhe dá a dimensão de literatura tout court, ainda que concedendo às convenções de um gênero bem estabelecido. Aliás, Grossman retrabalha no romance elementos narrativos que de certa forma já estão no inconsciente coletivo do leitor ocidental, símbolos poderosos do bem e do mal, imortalizados pelas fábulas clássicas e retomados numa tradição romântica que tem em Charles Dickens – e seus órfãos perdidos num mundo cruel – uma realidade bruta que continua viva. E viva não apenas na memória; realidade viva na esquina mesmo, com os traficantes, as máfias, os corruptos, as crianças em bueiros, a exploração dos menores e a destruição pelas drogas.

Como Assaf e Tamar nos convencem plenamente – e com mais força ainda porque pouco a pouco o livro vai se articulando como uma sutil história de amor – as figuras mais ou menos esquemáticas que os rodeiam naquele universo sombrio e misterioso em que se metem perdem o traço caricatural e ganham dimensão mítica. A freira Teodora, por exemplo, que 50 anos antes viajou de uma certa Ilha de Lycsos, no mar Egeu, enviada pela população para viver num mosteiro em Jerusalém, jamais sairá de sua torre para a rua, porque, assim que chegou ao destino, a Ilha em que vivia desapareceu sob um terremoto. Há um toque de “bruxa do bem” na figura simpática de Teodora – ela é boa justamente porque é capaz de se transformar. E é para Teodora que Dinka arrasta Assaf e sua pizza no primeiro momento do romance.

Na contrapartida do mal, o sinistro personagem Pessach – e o nome já indica o seu sentido de “travessia”, a expiação necessária que nos leva à salvação – lembra-nos vilões também míticos, como Stromboli, o terrível dono do circo do livro Pinocchio, clássico de Carlo Collodi, celebrizado também pelo desenho de Walt Disney. No romance de Grossman, Pessach mantém uma rede de “proteção” a jovens de talento abandonados, perdidos ou fugitivos, explorando-os cruelmente em espetáculos de rua, fachadas para outros crimes, e acabando por destruí-los pelas drogas e pelo trabalho escravo. Como se vê, se a questão palestina está ausente do livro, outros problemas – universalizados por uma geração de pais e filhos de todas as partes do mundo vivendo a mesma violência, a mesma mitologia urbana e a mesma necessidade de criar valores sólidos no mundo laico que se conquistou tão duramente – estão presentes.

A linguagem do romance tem um toque coloquial contemporâneo que é outro ponto de atração. E – dádiva do poder inesgotável das formas da narrativa como recriação, experimentação e interpretação da vida – embora o leitor saiba do começo ao fim o que vai acontecer no último momento, não conseguimos largar a história até que esse momento de fato chegue, quando então suspiramos, um pouco mais felizes. Completa-se a travessia de um belo e original livro de aventuras.

Cristovão Tezza é escritor, autor dos romances O Fotógrafo e Breve espaço entre cor e sombra, entre outros, e do ensaio Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo, todos publicados pela Editora Rocco.


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