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Uma vida trepidante
Folha de S. Paulo, 26/10/1999
A Majestade do Xingu, de Moacyr Scliar
Cristovão Tezza
Um homem na UTI conta ao médico a história de sua
vida: este é o eixo narrativo de "A Majestade do Xingu",
o novo livro do escritor gaúcho Moacyr Scliar. Parece simples
e banal - e, de fato, é uma história simples e banal,
mas daquela forma especialíssima de simplicidade e banalidade
que com freqüência faz a grandeza da literatura. Para
começar, o homem é um judeu russo sem nome cujo
único feito notável, pelo que ele nos diz com patética
insistência, ressaltando a cada linha a sua completa nulidade,
foi ter vindo da Europa ao Brasil, em 1921, no cargueiro Madeira,
ainda criança, junto com Noel Nutels, o mesmo Noel que
se tornará anos depois o célebre sanitarista dedicado
às populações indígenas.
No Brasil, as famílias se separam para sempre. Mas o nosso
personagem jamais esquecerá Noel Nutels, de quem ficamos
sabendo alguns momentos biográficos. Na verdade, o famoso
sanitarista em si não tem importância no livro; ele
é uma referência metafísica, a realização
de uma idéia - altruísta, talentoso, importante,
admirado, corajoso, um homem superior, e além de tudo um
judeu; enfim, um homem que, sendo o que é, esmaga o narrador,
desenha-lhe a insignificância, demonstra-lhe a nulidade,
o vazio, a covardia, o medo ("Noel era bom, era um santo
de tão bom, um santo judeu, um Jeová misericordioso.
Ruim era eu. Ruim e invejoso. Poço de maldade, poço
de inveja."). O narrador não é nada, jamais
pode querer ser nada, repetindo o clássico verso de Fernando
Pessoa; mas é como se ele se refugiasse nessa "contra-identidade";
é como se ele só pudesse ser alguma coisa, não
sendo o que o outro é. Há uma perturbadora afirmação
do "não-ser" - e talvez aí esteja o seu
segredo maior.
Essa tensa e louca relação que vai definindo a alma
do personagem ao longo de uma narrativa vertiginosa, realiza-se
com uma linguagem de uma simplicidade irresistível. A partir
da situação inicial, o homem falando a um médico
que não interfere, mas cuja presença é outra
tensão que pontua o livro, Moacyr Scliar simula tecnicamente
uma perfeita oralidade, o único registro da linguagem que
seria capaz de despojar ainda mais o personagem, tirando-lhe qualquer
ranço retórico, qualquer projeto de pose literária,
qualquer sombra de "estilo". O que também será
outra revelação: neste livro de Moacyr Scliar, a
simplicidade é menos um estilo e muito mais a realização
de uma ética, uma ética possível, aliás
a grande sombra que parece atormentar o narrador ao longo de sua
vida. Uma vida que corre, pela oralidade, como a paisagem vista
pela janela de um trem veloz - princípio e fim que se completam
numa estrutura narrativa de rara unidade.
Uma vida insignificante - a chegada ao Brasil, a morte do pai
que vendia gravatas com o toco do braço que perdeu, um
pai saudoso do conde Alexei, cujas botas ele consertava, em seguida
o trabalho numa loja, da qual se torna proprietário, depois
um casamento insosso, um filho, dois ou três conhecidos,
afinal a solidão de sempre e a UTI - e no entanto, para
o leitor, que vida trepidante! Atrás do balcão de
sua nulidade, nosso herói imagina desvarios de alegria
que se desdobram em castelos delirantes de uma outra vida, pontilhada
tanto de aeromoças que o amam em bolhas plásticas
em pleno céu quanto de um reencontro caloroso com um Noel
Nutels que, nos sonhos, o reconheceria imediatamente mesmo anos
depois. E o homem que conta vai promovendo também o sonho
da comunhão universal, mental e geográfica, o sublime
com o torpe, a confluência do índio com a civilização,
o Xingu entendido como o umbigo do mundo, onde ele colocaria sua
loja "A Majestade", realizando a seu modo o ideário
do ídolo Noel. Uma trajetória puramente mental de
picos hilariantes, como o major Azevedo, militar da repressão,
silenciado por uma inscrição de banheiro sobre sua
mulher, ou a militante Sarita, na cidade, conclamando os índios
contra o imperialismo do homem branco, de acordo com a orientação
ideológica da célula stalinista.
Se de um lado o livro é brasileiríssimo pelas suas
referências imediatas, de outro ele se inscreve, nas próprias
palavras do narrador, no "ininterrupto fluxo da torrente
espiritual que arrasta, como troncos ou como gravetos, todos os
escritores, todos os leitores, todos aqueles que se atiram de
ponta-cabeça no caudaloso rio do texto". Num afluente
importante desse grande rio encontraremos a família literária
de Scliar, agora num de seus mais inspirados momentos: "a
imemorial culpa judaica, a culpa que nos acompanhava de país
em país, de região em região, em nossa peregrinação
milenar". Em seu romance, Scliar realiza com sutileza tanto
o tema do "duplo" (que o escritor americano Philip Roth
levou ao extremo em "Operação Shylock"),
quanto o da "culpa imemorial"; nesse território,
o torturado personagem de Scliar fará com os heróis
de outro romancista americano, Bernard Malamud ("O assistente"),
uma companhia à altura. Numa palavra: "A Majestade
do Xingu" é um belo romance.
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