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Volúpia bibliográfica
Revista Cult - agosto de 1999
Entre Livros, de João Alexandre Barbosa
Cristovão Tezza
A escrita transforma - quem quer que tenha realizado essa viagem
sem volta em direção ao mundo da escrita e dos livros,
a aventura de todos os leitores do mundo, sabe o poder que os
textos representam em nossas vidas. Ganhamos sentido, dimensão
e intensidade na exata medida daquilo que lemos, refletimos e
refratamos, dos outdoors de beira de estrada aos folhetos de vidente,
das bulas de remédio à primeira edição,
digamos, de um tratado de Copérnico; o livro, a síntese
da escrita, é esse objeto que, nos descentralizando, acaba
afinal por nos dar um centro. Com o auxílio dele vamos
nos transformando em uma ética, uma visão de mundo
que se escolhe entre outras, em uma linguagem, humor, estilo,
vocabulário, até mesmo numa entonação
que nunca é apenas nossa, mas um território comum,
esse território entre as pessoas que é de fato o
único espaço concreto que faz sentido, em todos
os sentidos da expressão.
Tudo isso para falar de alguém cuja paixão pela
palavra escrita e pelos livros é visível em cada
vírgula de seu olhar sobre o mundo. O crítico João
Alexandre Barbosa é essa pessoa; e Entre Livros é
o título, aliás apropriadíssimo, que ele
acaba de lançar numa simpática edição
da Ateliê Editorial, com prefácio de Manuel da Costa
Pinto. Para quem não conhece a sua vasta obra crítica,
e tem, como ele, essa paixão saborosamente errática
porém sempre consistente pelos livros, Entre Livros é
uma ótima porta de entrada.
Como o próprio autor esclarece em sua "Nota (Muito)
Pessoal", ao debitar o título de seu livro à
memória de Alfonso Reys, escritor e diplomata mexicano
que foi embaixador no Brasil nos anos 40, seu objetivo "é
também fazer ecoar a idéia de que nenhum livro está
só, nem é lido sem que se pense em outros livros,
que vão sendo lidos ou relidos na medida mesma em que ocorre
a leitura presente". Uma viagem livre, por assim dizer, uma
espécie de "ronda das lombadas", na imagem feliz
de Mário Quintana, é o que nos apresenta este pequeno
volume, costurando, texto a texto, parte da teia infinita de títulos
que dá contorno a quem lê, sem perder de vista nem
o rigor crítico, temperado pela sintaxe do seu humor, nem
a elegância de seu estilo, essa dádiva sempre bem-vinda
entre os que fazem crítica.
Compartilhamos com ele, nos textos da primeira parte ("Do
Caderno de Leitura"), essa espécie de volúpia
bibliográfica de quem sabe que todo livro é um tempo
e um espaço precisos, um objeto, mas um objeto indócil
capaz de detonar uma seqüência ininterrupta de referências
e associações, pelas quais viajamos, sempre com
prazer. Veja-se, em "Da Paixão pelo Livro", como
se faz a referência a Sylvia Beach, a editora do Ulisses,
de James Joyce, e fundadora da célebre livraria Shakespeare
& Company, de Paris (à qual Hemingway dedica um capítulo
de seu Paris é uma festa): "Sylvia Beach foi uma norte-americana
de New Jersey voluntariamente exilada na Europa. Editora de um
único autor, o mencionado Joyce, Sylvia Beach fez de sua
livraria da Rue de l'Odeon um centro da literatura dos anos 20
e 30. Seus freqüentadores chamavam-se Joyce, Pound, Gertrude
Stein, Hemingway, Scott Fitzgerald, Sherwood Anderson, D. H. Lawrence,
ou franceses como Valéry e Gide, e ela somente desapareceu,
sob o tacão nazista, em 1941 (e é notável
a última cena dessas memórias: Miss Beach sendo
chamada por Hemingway de cima de um jipe, nos dias da libertação
de Paris, aos gritos de "vamos libertar as adegas do Ritz".)"
Em "Pequenas Variações sobre o Ensaio",
o livro nos dá a chave de seus próprios traços,
ao comentar a marca do ensaio como gênero: "uma releitura,
vagarosa e vagabunda como, aliás, queria Montaigne".
Em "Sob Livros", numa metáfora perfeita de seu
empreendimento, ele nos fala do terror de quem não está
mais "entre mas sob livros: ameaçado de desaparecer
(...) o leitor já não sabe o que procura e fica
desnorteado". E, como quem dá a solução
a quem se desnorteia, ele nos fala de uma tese sobre a revista
argentina "Sur", que afinal se desdobra, entre outras
referências, na figura fascinante do Sir Richard Francis
Burton (que esteve no Brasil em 1865 e escreveu uma obra sobre
o país) - e o que parecia um caos bibliográfico
ganha súbito a nitidez de um traço sutil que não
se perde em seus limites e nem do seu projeto de origem.
Comentando dos títulos recuperados de Brito Broca à
edição crítica das obras de Eça de
Queirós (quando ele nos lembra, a propósito, que
nosso Machado ainda está ao relento das edições
incompletas e precárias), e de José de Alencar a
José Verissimo, nesses dois últimos casos sob a
forma de ensaios introdutórios mais longos, João
Alexandre Barbosa integra sempre o seu olhar à realidade
brasileira mais concreta; o reconhecimento dos traços formais
da literatura, como tal, não perderá de vista a
sua raiz histórica e a sua perspectiva social, na melhor
escola de Antonio Candido. E é capaz de, nesse terreno,
transitar por suas manifestações mais díspares,
tanto nos textos de João Antônio, já um clássico
da literatura urbana contemporânea, na pungência de
seus pingentes, como na recuperação de um certo
Raimundo Antônio da Rocha Lima, morto no Ceará, no
século passado, aos 23 anos de idade ("e não
aos 27, como erradamente afirma Clóvis Bevilacqua",
esclarece João Alexandre, em seu amor pontual à
precisão), e a quem devemos uma obra "que se impõe
para o conhecimento de toda uma época". Ou ainda investigar
a linguagem de um clássico absoluto, como João Cabral
de Melo Neto, em "Sevilha, Objeto da Paixão",
assinalando que, no poema, "o leitor que anda por Sevilha
é o mesmo que vê Sevilha andando na mulher que é
Sevilha". Enfim, "a forma da paixão pela cidade
que é, necessariamente, uma paixão pela forma".
A tranqüila erudição de João Alexandre
Barbosa é generosa o suficiente para que a ela nos entreguemos
mesmo nos momentos em que não compartilhamos de suas paixões
- e essa capacidade difícil de repartir a diferença
talvez seja uma das qualidades maiores de quem escreve. Assim,
em dois ensaios mais extensos - "Permanência e Continuidade
de Paul Valéry" e em "Paul Valéry e a
Tradução de Monsieur Teste" - João Alexandre
faz uma homenagem a um dos ícones maiores do formalismo
poético do século, ao mesmo tempo em que, pela exata
escolha das citações, desenha um bom retrato de
sua arqui-metafísica, essa utopia de uma língua
poética cuja imanência seja fundada nas mesmas regras
do sistema saussuriano (uma utopia que, vinda de longe, encontrará
em Saussure sua ciência, passará pelos formalistas
russos, depois pelas correntes estruturais e todas as desconstruções
subseqüentes).
Da chamada "linguagem comum", diz Valéry, "devemos
tirar uma Voz pura, ideal": eis o cul-de-sac em que ainda
hoje se encontra Monsieur Teste, o personagem-Valéry, em
sua desgraçada luta para encontrar o elo perfeito entre
o som e o sentido. Na mesma época em que o arquétipo
metafísico de Valéry buscava sua impossível
resposta, a pedra filosofial da "linguagem em si" -
e aqui, por conta própria, continuamos a tecer a teia inesgotável
das associações entre livros - como num conto de
Borges, um russo literalmente sem perna chamado Mikhail Bakhtin,
penando no Cazaquistão de Stálin, produzia uma monumental
teoria da linguagem e da literatura que, por ironia, talvez contenha
uma boa luz. Sempre cá entre livros, eis aí um bom
começo para o século XXI, na busca da consistência,
como queria Italo Calvino em suas propostas para o próximo
milênio, ainda que em outra direção, propugnando
esse casamento esquisito entre ciência e a arte; uma imagem
que João Alexandre retoma ao colocá-los, a Valéry
e Calvino, na mesma filiação.
Enfim, Entre Livros é uma viagem estimulante para
fruir, concordar, pensar e até mesmo contrariar, aqui e
ali, como se estivéssemos, nitidamente, diante de alguém
por inteiro, conversando. Nesse caso, sorte nossa, diante de um
crítico com as qualidades de João Alexandre Barbosa.
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