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Sem sotaque, sem mito e sem exotismos
Folha de S. Paulo - 24/5/1999
O ventre, de Carlos Heitor Cony
Cristovão Tezza
Li O ventre, de Carlos Heitor Cony, nos meus 13 ou 14 anos, sentindo
as delícias secretas da transgressão: ali se encontravam
blasfêmia, revolta e, naqueles tempos castos, uma vaga pornografia.
Desde então - e muitos da minha geração dirão
o mesmo - Cony passou a ser uma referência dupla, a do jornalista
militante contra a ditadura e a do romancista agressivamente contemporâneo,
falando direto ao seu leitor daquilo que naquele momento nos assombrava,
da Informação ao crucificado à travessia
de Pessach.
Assim, reler O ventre, que a Companhia das Letras relança
agora, 40 anos depois, foi uma emoção especial,
e arriscada, porque o tempo costuma ser impiedoso quando ilumina
nossas sensações de juventude. O livro começa
com duas boas mentiras: "Jamais me preocupei com problemas
do espírito", quando o narrador não faz outra
coisa ao longo do livro; e "não sou lido tampouco"
- e a construção do romance e a voz que nele fala
desmentem essa afirmação, que soa curiosamente como
um elogio da ignorância, o que também é ótima
heresia. Assim, em dois parágrafos a linguagem do narrador
já se relativiza, afastando-se do "pressuposto da
verdade" que é a essência do bom jornal, mas
quase nunca a da ficção, um salto sempre difícil:
a passagem do jornalismo ao romance às vezes revela-se
mortal. Não será esse o caso de Cony.
A história de O ventre tem contornos rodrigueanos:
é a vida de dois irmãos, narrada pelo bastardo,
das masturbações da infância à tragédia
final, passando pelo amor comum à mesma mulher. Mas tudo
é narrado com uma secura quase que em estado absoluto,
uma recusa que se pretende completa a qualquer valor supostamente
positivo, da solidariedade ao amor, do lirismo à preocupação
social: "Só creio naquilo que possa ser atingido pelo
meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito."
Ao lado disso, o império insuperável da culpa: "Cristo
só convence como Deus pregado na cruz". Ao longo da
narração, corre subterrânea o que seja talvez
a face mais sombria do cristianismo, essa nossa herança
ibérica, inquisitorial, que quando se revolta descobre
o prazer, a delícia da blasfêmia; não basta
negar - é preciso agredir. No caso de O ventre, a negação
pode chegar ao sarcasmo, mas nunca ao humor; o narrador é
um bloco único de recusas, um olhar que destrói
tudo o que vê, porque tudo que vê lhe parece falso,
do nascimento à morte. E, em volta dele, nada terá
autonomia - o ponto de vista também será monolítico.
O completo desnudamento dos valores passa igualmente pelo nosso
rico filão naturalista, de Aluísio de Azevedo a
Dalton Trevisan - a biologia como um valor negativo, e não
apenas neutro; o narrador reforça a cada minuto o sem-sentido
da existência pelo horror das carnes, de tudo que gira em
torno do ventre, "o chifre e o bastardo" - "A vida
era essa mesmo: uma questão glandular". O elegante
Machado de Assis, que reclamou dos "catarros" que abundam
em Eça de Queiroz, torceria certamente o nariz para a "intimidade
de espermas", a muitas vezes repetida "tripa inchando
na barriga", o "sexo medonho", a "morte com
penicos", a "frieza de réptil", a "baba
grossa", as "ancas medonhas", os "porcos"
que pontuam o livro inteiro e aparecem sempre que a menor nesga
de afetividade - que, por princípio, será falsa
- ameace o narrador.
Há dois aspectos fundamentais que salvam o romance de se
tornar uma obra literariamente datada. O primeiro deles é
a complexidade vital do narrador; há uma tensão
permanente naquele desejo metafísico de recomeçar
do zero, de transcender a miséria humana aos últimos
limites; de recusar o suicídio como uma solução
apenas emocional. Há, também, uma grandeza intrínseca
na recusa teimosa de ceder complacente a qualquer traço
da mentira humana; a morte será preferível a ela.
O segundo aspecto se revela mais nítido ainda quando lançamos
um olhar retrospectivo para a literatura brasileira dos últimos
cinqüenta anos, e retomamos o momento em que O ventre aparece,
em 1958. Se a tensão do personagem é a resposta
a uma inquietação filosófica universal típica
do século - Deus está morto; e agora? - , a arquitetura
e a linguagem do romance o colocam, desde a origem, também
no avesso e no "errado" da história. Em pleno
domínio do Grande Sertão que tem marcado a nossa
cultura desde o romantismo, Cony afirma uma literatura sem sotaque,
sem mito, sem natureza, sem exotismo, sem paisagem, sem nada daquilo
que nos definia classicamente como "brasileiros". O
seu romance é um texto puramente "mental", por
assim dizer; o verde do mar de Maceió ou o rio das traíras,
espaços que aparecem no romance, são presenças
apenas irritadas. O vento nos coqueiros é "grito vegetal
que vinha de alma nenhuma".
Por tudo isso, O ventre prossegue hoje uma obra transgressora,
um belo ponto de partida ético e literário de um
dos nossos grandes escritores.
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