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Variações Ajzenberg
Revista Cult - abril de 1999
Variações Goldman, de Bernardo Ajzenberg
Cristovão Tezza
Como a literatura é talvez a mais lenta das artes, por
excesso de proximidade ainda não temos uma imagem nítida
da prosa brasileira dos últimos anos. Ou pelo menos da
prosa urbana brasileira mais recente, pós-Rubem Fonseca,
quando a cidade, já o centro do país há décadas,
começa afinal a entrar de modo mais consistente na nossa
literatura no que ela tem de "não característico",
"não típico", "não exótico".
A cidade como um espaço de relações abstratas,
desesperançadamente sem mitos, uma rede tentacular mais
de funções do que de seres, que na sua urgência
parece desprovida de história, infância, silêncio,
pais, filhos, árvores, paisagens, luas, saudades ou mesmo
a idéia de futuro, um futuro obrigatoriamente luminoso
- enfim, um espaço esvaziado de tudo aquilo que ao longo
do tempo vem construindo os lugares comuns (não necessariamente
os chavões) da literatura.
Não se trata apenas do espaço físico, do
tema da grande metrópole como um pano de fundo a destruir
as raízes "verdadeiras" do homem - um clichê
renitente da nossa cultura - mas a consciência desenraizada
como um dado prévio, um a priori da vida. Por esse viés
(e talvez apenas por ele) uma obra como São Bernardo, de
Graciliano Ramos, será mais transgressora do que Grande
Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. O que poderia
nos levar a dividir didadicamente os nossos prosadores entre os
grandes criadores de mitos (José de Alencar, Jorge Amado,
Guimarães Rosa, por exemplo, por mais disparatada que pareça
essa família), e os seus demolidores, cujo patrono, é
claro, seria Machado de Assis, não por acaso o mais urbano
e o menos típico de nossos escritores.
Esse breve esboço parece adequado quando acabamos de ler
um exemplar do que poderia ser definido como o "absoluto
contemporâneo": o romance Variações Goldman,
de Bernardo Ajzenberg (Rocco, 1998, 307 pp.). Trata-se do quarto
romance deste autor nascido em 1959, portanto pertencente ao que
se pode chamar de "nova geração" (lembrando
mais uma vez que a literatura é uma arte lenta, quando
tudo o mais é rapidíssimo: aos 40 ainda somos "novos"...),
e de um romance realizado de tal forma, em linguagem e arquitetura,
que poderá ser tomado como uma ótima referência
de uma faixa atual da prosa urbana brasileira e de seu imaginário.
Começando pela linguagem, em seus traços sintáticos
e semânticos, não há absolutamente nada de
extraordinário em Variações Goldman - o livro
parece realizar o velho bordão de Millôr Fernandes,
enfim um escritor sem estilo! Claro, se entendemos estilo como
alguma coisa parecida com "marca retórica pessoal",
Ajzenberg não deixa transparecer estilo nenhum; mas se
o entendemos como a arena da linguagem em que diferentes vozes
sociais vão se encontrar para a encarniçada luta
das palavras (de seus pontos de vista), o livro como que entrega
a iniciativa de sua fala à "voz corrente", e
uma voz corrente que não tem dono, que não quer
frisar sua diferença nem impor seu sotaque; uma voz corrente
que não quer chamar a atenção sobre si mesma,
para não desviar o olhar do leitor daquilo que, na perspectiva
do romance, é realmente importante.
Enfim, Ajzenberg atinge a difícil simplicidade de uma palavra
quase abstrata, uma espécie de "senso comum"
de uma certa consciência dominante, como que o ideal da
comunicação urbana. Nesse sentido, a mímese
da oralidade que ele realiza inclui tanto formas congeladas de
um universal literário já sem peso específico
mas perfeitamente funcional ("ela disse", "perguntou
Dorieta", "retruquei"), neologismos da tecnocracia
urbana ("agudizava"), gírias e expressões
populares já consolidadas e de uso corrente ("ela
tratava de me enrolar"), a saborosa mistura de pronomes ("convite
para te fazer" seguido de "Você não quer
ver o ensaio hoje?"), tudo isso pontilhado de formas praticamente
restritas à escrita, como o uso abundante do pretérito
mais que perfeito, e aqui e ali o brilho antigo e precioso de
um "conquanto", por exemplo. No conjunto de sua linguagem
- uma vez que a literatura é feita de palavras, e as palavras
não vêm dos dicionários, mas de seus usuários
reais - Variações Goldman é um perfeito mergulho
no universo de uma classe média urbana brasileira recente,
no seu segmento que lê jornais e sobrevive em apartamentos.
O narrador, em primeira pessoa, sintetiza esse universo social
em cada uma de suas palavras, um universo cosmopolita, racional,
abstrato, desenraizado e crítico. Veja-se, por exemplo,
como ele descreve um pequeno coral, subentendendo-se em cada expressão
uma visão de mundo perfeitamente delimitada: "Com
toda essa miscigenação, formara-se ali, na realidade,
uma peça publicitária perfeita, utilizável
a qualquer momento em alguma propaganda oficial do governo que
quisesse expor as benesses da 'democracia racial' brasileira.
Falta apenas um ruivo como eu para completar a heterogeneidade,
especulei, enquanto coçava os olhos energicamente."
Para completar, o narrador, Silvio Goldman, é judeu. Mais
que isso, um judeu ateu, o que será um diferencial a se
notar, porque, brasileiríssima em tudo, a narrativa deve
um fio de sua alma a uma rica herança de narradores judeus
modernos, marca simultânea de memória ancestral e
ausência de raiz; nada mais exasperadamente urbano do que
um judeu.
Como a linguagem do livro, pela sua "naturalidade",
simulando com perfeição a "nossa" linguagem
oral e escrita, já nos conquistou - entramos no romance
de cabeça, irresistivelmente. Também aí,
na sua arquitetura, a obra de Bernardo Ajzenberg parece não
ter nada de espetacular; a rigor, o que acontece é traduzível
em duas ou três linhas: Silvio Goldman, arquiteto, se apaixona
por Dorieta Mangano, tradutora, e com ela tem uma filha, Izabella.
O livro (ou, melhor dizendo, Silvio Goldman) conta a história
dessa história, pontuada pela presença de alguns
poucos amigos e parentes. Tudo é brutalmente contemporâneo,
da linguagem ao espaço urbano, uma São Paulo que
aparece em seus detalhes de ruas e bairros, e mais uma ou outra
referência histórica, da eleição de
Tancredo Neves à presidência até o confisco
do governo Collor.
Também contemporânea, pelo contraponto erudito e
seu toque "pós-moderno", é a referência
contínua às Variações Goldberg, de
Bach (de onde vem o título do romance), a partir da novela
O náufrago, do austríaco Thomas Bernhard (Companhia
das Letras, 1996), cujo tema, ou sub-temas (tais como o suicídio
como um gesto de vingança, ou o projeto do absoluto como
o único aceitável na vida) apresentam alguns pontos
periféricos de contato. Referência mais próxima,
talvez menos como citação e mais como homenagem
a Rubem Fonseca, o protagonista Silvio Goldman também gosta
de (ou "curte", como ele certamente diria) um charuto,
mas em seus dedos sempre desajeitados um Partagas ou um Cohiba
acabam decididamente fora de lugar, ao contrário da pose
esnobe e auto-suficiente dos heróis do escritor carioca.
Tudo isso, entretanto, são os andaimes da obra. A grande
força e a grande arte de Bernardo Ajzenberg, já
delineadas nos seus livros anteriores e agora plenamente realizadas,
estão na natureza original do seu realismo, a capacidade
de criar uma empatia permanente - o livro tem um ritmo, um equilíbrio
e uma unidade simplesmente perfeitos, na sua exata opção
convencional - com a máxima economia de recursos. Pelo
olhar agoniadamente miúdo (o narrador, além de tudo,
é míope e vive sofrendo com lentes de contato),
pelo detalhe cru e aparentemente irrelevante, pela falta deliberada
de ênfase e de gestos retóricos, pelo horror à
grandiloqüência, e pela sinceridade esquisita e ambígua
(como todas as sinceridades modernas) que vai realizando e construindo
a voz de Silvio Goldman, uma espécie de "arquiteto
de si mesmo", Variações Goldman é uma
obra exemplar, em que carpintaria, visão de mundo e contemporaneidade
andam juntas.
Neste livro, nada é esquemático, caricatural ou
postiço; Silvio Goldman, ao longo de sua década
de pequenos erros - "Onde foi que erramos?", é
a pergunta que ele às vezes se fará - vai nos agarrando
suavemente pelo colarinho enquanto nos fala de um universo que,
sem ter nada de efêmero, está brutalmente próximo.
É claro que a ênfase temática é apenas
uma das faces da análise de uma obra literária,
mas no caso de Bernardo Ajzenberg ela se sobressai naturalmente,
pela própria perspectiva do livro. Seria o caso de dizer
que Variações Goldman dirá ao leitor comum,
na sua síntese absolutamente pessoal, muito mais sobre
a alma dominante dos últimos 20 anos do Brasil e sobre
a falência das nossas utopias que muita historiografia.
O que nos devolve ao começo; entre alimentar os mitos e
destruí-los, a prosa de Ajzenberg, discreta mas inapelavelmente,
não deixa nada em pé.
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