O fio da navalha
Revista Cult, março/1999
São Petersburgo e A casa de Puchkin

Cristovão Tezza


I

Poucas cidades do mundo serão tão inescapavelmente literárias como São Petersburgo, a antiga capital da Rússia. Construída no início do século XVIII sobre um pântano às margens do rio Neva, pela vontade única e férrea de Pedro, o Grande, contra toda a lógica geográfica e estratégica, São Petersburgo em pouco tempo se tornou uma referência obrigatória do universo russo, o ponto de encontro e de choque de sua cultura com o mundo ocidental. Pelas suas ruas literárias continuam desfilando os funcionários de Nicolai Gogol, as atormentadas figuras de Fiodor Dostoiévski, os pais e filhos de Ivan Turguenev, e o célebre "Cavaleiro de Bronze", de Aleksander Puchkin - a estátua do czar Pedro que, nos versos do poeta, se desprende da pedra e persegue o pobre Ievgeni, cuja amada morreu numa enchente -, entre centenas de outros personagens que de um modo ou outro anteciparam as grandes questões do século XX. A famosa estátua eqüestre, encomendada pela imperatriz Catarina ao escultor francês Etienne Falconet, terminada em 1782 depois de 16 anos de trabalho, tornou-se o símbolo da cidade.

Povoada de revolucionários, terroristas, figuras messiânicas, músicos de vanguarda, filósofos, artistas - todos parece que experimentando os limites da condição humana -, São Petersburgo será também o palco de insurreições violentas, como a de 1905, ensaio geral da outra, a (quase) definitiva revolução de outubro de 1917. Já transformada por decreto do czar Nicolau II em Petrogrado - para reforçar o significado eslavo da cidade contra a "invasão" do ocidente - sediará a exposição futurista de 1915, com a tela "Quadrado Negro", de Casimir Malevich. No ano seguinte, Andrei Bièli publica Petersburgo, um romance cubista que é uma síntese da efervescência cultural da cidade e se tornou um dos clássicos do modernismo.

A literatura é apenas uma das faces da personalidade artística de São Petersburgo. Ao lado da fantástica arquitetura da cidade, da inacreditável ousadia de sua concepção e realização, todos os campos da arte desenvolveram-se na cidade - basta lembrar a música de Mussorgski, Rimski-Korsakov e Tchaikovski; no século XX, surgirão os nomes de Prokofiev, Shostakovich e Stravinski.

Não por acaso, a revolução vitoriosa de 1917 transferirá a capital do país para Moscou, temerosa daquele foco de subversão. E no longo período de Stálin, São Petersburgo, agora ironicamente rebatizada de Leningrado (Lênin detestava a cidade), será vítima de uma das mais sinistras políticas de extermínio da inteligência de que se tem notícia. Ressoará solitária e clandestina a voz da poeta Anna Akhmátova, cujos poemas Réquiem e Poema sem herói correm manuscritos de mão em mão. Na Segunda Guerra, São Petersburgo sofrerá o terrível cerco de 900 dias, quando pessoas caíam nas ruas, literalmente mortas de fome. No exílio, o escritor Vladimir Nabokov, também de São Petersburgo, passará a escrever seus livros em inglês. No final da década de 50, quando se prenunciava alguma liberalização pelo breve sopro da era Krushev, uma nova geração de escritores ressurge na cidade, mas não consegue publicar nada. O melhor exemplo será o poeta Joseph Brodsky (1940-1996), que nos anos 60 foi preso (por "vadiagem") e condenado a trabalhos forçados; em 1972 será expulso da União Soviética, ganhando o prêmio Nobel em 1987 por sua obra poética e ensaística.

Essa magnífica e quase sempre trágica história pode ser acompanhada passo a passo no livro São Petersburgo - uma história cultural, de Solomon Volkov, um músico russo que emigrou para os Estados Unidos em 1976. Esse é exatamente o caso de um livro de não-ficção em que caberá o velho e simpático lugar-comum das resenhas: uma obra que se lê como se fora um romance. Ao longo de suas mais de 500 páginas - com um texto tão agradável, que poderiam ser muito mais - o leitor fará uma saborosíssima viagem histórico-cultural pela cidade, detendo-se em seus momentos mais significativos. São seis capítulos temáticos, que vão da Petersburgo clássica, de Puchkin, Gogol e Dostoiévski - escritores que pelo poder de sua literatura acabaram por definir a alma da cidade -, passando pelo início do século XX e sua extraordinária revolução modernista, depois pelos anos negros do Grande Terror stalinista e do cerco de Leningrado (a Leningrado de Dmitri Shostakovich, nas palavras de Volkov), até a Petersburgo de Joseph Brodsky, a geração mais recente, que continua a ouvir o longínquo Cavaleiro de Bronze, de Puchkin, galopando nas ruas da cidade. Galopando para onde? - pergunta-se Solomon Volkov. Uma pergunta sem resposta, mas que está no cerne de São Petersburgo desde a sua fundação. Uma pergunta que, aliás, não pode ter resposta - é o que depreendemos desse livro, como se a cidade fosse, por si só, pela sua origem e pela sua história, o fio da navalha da cultura russa, o ponto de interrogação do que ela pretende ser e do seu destino real.


II

Um outro modo de revisitar São Petersburgo e a sua história, agora estritamente no campo da literatura, é ler o romance A casa de Puchkin, de Andrei Bitov, escritor da geração de Brodsky, nascido em 1937. De algum modo, também Bitov tenta responder à grande pergunta da cidade. O livro seguiu o caminho difícil e tortuoso de toda produção não oficial da União Soviética. Escrito em 1970, sob o desespero do fim da era Krushev, a pesada estagnação que se seguiu e sob o impacto do kafkiano "julgamento" de Brodsky (conforme relata Solomon Volkov a partir de entrevista com o autor), foi publicado apenas 8 anos depois, no exterior, permanecendo na lista dos livros proibidos até 1987.

Bitov enfrenta a história literária de São Petersburgo já a partir do título, altamente simbólico: a Casa de Puchkin é o Instituto de Literatura Russa da Academia de Ciências de Leningrado, e é lá que trabalha (nos nossos anos 60) o personagem central do romance, Liova Odoievstsiev, filho e neto de filólogos, numa família de estirpe nobre. Ele se relaciona com três mulheres, mas uma delas, Faína, ocupa praticamente todo o espaço do livro, junto com o amigo (de Liova e de Faína) Mitichatiev. Há também um certo tio Dickens. O enredo, se podemos dizer que existe um enredo no sentido "normal" da palavra, é nebuloso, incerto, difuso e freqüentemente duplo. Trata-se mais de um eixo condutor: Liova sente um terrível ciúme de Faína e acaba por duelar com Mitichatiev, ao modo do próprio Puchkin e de Mikhail Lermontov (1814-41), outro clássico russo. O autor - ele mesmo, Andrei Bitov - intromete-se muitas vezes na narrativa, comentando-a, refazendo-a e apresentando versões diferentes. O livro inteiro é carregado de citações literárias, a partir dos títulos dos capítulos: "Pais e filhos", da obra de Tuerguenev, "O herói do nosso tempo", de Lermontov, além de inúmeras referências ao Cavaleiro de Bronze, personagem fantástico da obra de Puchkin. Já o prólogo ("ou capítulo, escrito depois dos outros") - Que fazer? - retoma tanto o romance de N. G. Tchernichevski, escrito na prisão em 1863, conforme esclarece nota do tradutor, quanto o título de um célebre panfleto de Vladimir Ilitch Lênin dos anos revolucionários.

Num primeiro momento, o leitor mais ou menos familiarizado com uma certa tradição da prosa russa (que, nas palavras de Brodsky, preferiu o mimetismo do gigante Tolstói às alturas metafísicas de Dostoiévski, o que acabou descambando na mediocridade do realismo socialista), sentirá alguma estranheza em Bitov, alguma coisa que poderíamos, a propósito, chamar de "a invasão do ocidente", como temiam os eslavófilos de Petrogrado. Quase não há no romance aquela "nitidez dramática" que aprendemos a amar em obras tão diferentes quanto Os irmão Karamazov e A morte de Ivan Ilitch, uma nitidez que permanecerá viva nas obras experimentais do início do século, cujo melhor exemplo será talvez Petersburgo, de Andrei Bièli. E, obra tão filha dos anos 60 e 70 quanto a literatura que se produzia no ocidente, Bitov assimila os truques mais ou menos datados daquilo que, por rarefação teórica, se convencionou chamar de "pós-modernismo". Simplificando, trata-se do recurso de lembrar o leitor, reiteradamente, de que aquilo que ele está lendo é uma obra de ficção, um recurso que Bitov não economiza.

Um russo "pós-moderno" - essa leveza de brincar com estruturas narrativas como numa bem-humorada aula de literatura acadêmica - não parece algo estranho? E transparece também uma influência da narrativa americana, com toques de William Faulkner, a sintaxe circular que avança para o centro da cena pelas beiradas e que se define pelas negativas, tateante: "Para tanto era indispensável que ele não precisasse de ninguém para que ninguém precisasse dele, porque a mínima dependência, a mínima obrigação de amar levava-o imediatamente ao fundo do poço como um tronco pesado e já ebanizado; tampouco suportaria a mínima carga de sentimentos: explodia, dissipava-se, desfazia-se em cacos - cacos secos, pontiagudos, miúdos, de que se constituía a muito custo. E Liova o sentiu não exatamente assim, não inteiramente em palavras mas com muita plenitute, em proporções densas, como se ele já não fosse Liova mas o próprio tio Mítia, e experimentou tamanha nostalgia, tamanho medo e embaraço ao enxergar aquela imagem que se projetava na memória que parecia vê-la precisamente naquele momento e não meia hora antes."

Se analisamos A casa de Puchkin apenas pelo ângulo formal, estaremos diante de uma curiosa obra pós-moderna, já repousando na prateleira do tempo. Mas, de fato, esse é um livro substancialmente temático - e como toda a literatura russa, pré e pós revolução, parece incapaz de se descolar do mundo social, concreto, filosófico, religioso, das causas primeiras e dos fins últimos; a velha pergunta - para onde vamos? - estará sempre presente. O narrador tateante de Bitov, ele próprio, parece sussurrar ao leitor o tempo todo, sob o mormaço estagnado do sistema totalitário provavelmente mais perfeito que já se criou na terra (Eles queriam construir um novo homem, diz Joseph Brodsky, e conseguiram), que não pode dizer tudo o que tem a dizer; o narrador se move num mundo delirante em que as palavras não têm direção ou sentido; elas não pertencem aos objetos a que se referem e as coisas não são nem o que são, nem o que parecem ser. Sem ar, o próprio espaço se transfigura num universo medonho de possibilidades. Assim, os truques pós-modernos serviram perfeitamente para a paisagem desconstruída de Bitov. Na bela pretensão de mergulhar em toda a tradição literária de São Petersburgo - porque só nela seria possível respirar - Andrei Bitov retoma a linhagem que o teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), outro perseguido de São Petersburgo, chamará de "sátira menipéia" (gênero cujo nome vem de Menipo de Gadare, século III a.C) ; nas palavras de Bakhtin, ela é "a combinação orgânica do fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do elemento místico-religioso com o naturalismo de submundo", uma fortíssima tradição literária russa. "A menipéia", diz Bakhtin, "é o gênero das 'últimas questões', onde se experimentam as últimas posições filosóficas" - ela vive sob o sopro da totalidade.

Um universo que vive sempre na tensão de seu próprio limite, prestes a explodir, a se transfigurar em outra coisa, incontrolável: esse é o mundo que, desde Gogol, será umas das marcas mais notáveis de alguns momentos da literatura russa, como Petersburgo, de Andrei Bièli, e O mestre e margarida, de Mikhail Bulgakov. A casa de Puchkin, de Bitov, é uma experiência literária que cabe perfeitamente nessa tradição. E representa, mais uma vez, na sua simbiose formal com a novidade pós-moderna, a clássica dualidade que está na origem de São Petersburgo, a "alma russa" versus a "decadência do ocidente". Uma questão que Bitov define, num momento do livro, com uma bela e delicada imagem: "Essa permanente preocupação russa com o destino da Torre de Pisa..."


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

São Petersburgo - uma história cultural, de Solomon Volkov. Editora Record, 1998. Tradução de Marcos Aarão Reis. 583 pp.
A casa de Puchkin, romance de Andrei Bitov. Editora Record, 1998. Tradução direta do russo de Paulo Bezerra. 413 pp.
Menos que um, ensaios de Joseph Brodsky. Editora Companhia das Letras, 1994. Tradução de Sergio Flaksman. 230 pp.
Petersburgo, romance de Andrei Biéli. Editora Ars Poetica, 1992. Tradução direta do russo de Konstantin G. Asryantz e Svetlana kardash; posfácio de Albert Avramenko; notas de Robert A. Maguire e John E. Malmstad. 367 pp.
Réquiem, poema de Ana Akhmátova. Art Editora Ltda., 1991. Tradução livre e notas de Aurora Fononi Bernardini e Hadasa Cytrynowicz; prefácio de Leo Gilson Ribeiro. 57 pp.
Problemas da poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin. Editora Forense-Universitária, 1981. Tradução direta do russo de Paulo Bezerra. 239 pp.
O mestre e margarida, romance de Mikhail Bulgákov. Editora Ars Poetica, 1992. Tradução direta do russo de Konstantin G. Asryantz; posfácio de Boris Sokolov. 437 pp.

Em inglês:

Select Poems. Anna Akhmatova. Translated by D. M. Thomas. Penguin Books, 1988. 147 pp.
On grief and reason. Essays. Joseph Brodsky. Farrar, Straus and Giroux, New York. 1997. 484 pp.



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