|
A lei da pura sobrevivência
Folha de S. Paulo, 14 de março de 1999
Se não agora, quando?, de Primo Levi
Cristovão Tezza
O nazismo continuará por séculos, certamente, a
servir de tema para a arte pela sua absurda e inexplicável
síntese, esse cruzamento assombroso do máximo de
barbárie com o máximo de ciência. Restou daquele
pedaço sinistro do século XX uma pergunta renitente
e sem resposta plena; a historiografia, na sua frieza nítida
de dados, parecerá sempre incompleta - é preciso
mais para compreender. Além de um problema alemão
ou judaico, o nazismo será sempre uma questão universal.
Onde houver um Estado, lá estarão também
as sementes do horror, por mínimas que sejam, à
espreita; defender-se delas talvez uma das principais tarefas
éticas desde que o Holocausto suprimiu, para sempre, nossa
inocência.
E aqui a arte é um campo privilegiado, tanto pelo seu poder
antecipatório quanto pela liberdade do olhar, a liberdade
que é a sua própria razão de ser. Não
pode haver território proibido para a arte, e nenhum controle
sobre o seu olhar: tudo que há de melhor na produção
artística corrobora essa tese. O acúmulo seco dos
fatos ganha sob a arte um ponto de vista e a sua complexidade.
A restrição que se faz, por exemplo, a Roberto Begnini
pelo seu filme "A vida é bela", sob o argumento
de que o Holocausto não poderia ser objeto do humor parece-me
inaceitável a priori, pelo simples fato de pressupor a
existência de territórios sagrados, além do
alcance da arte, vedados à sua liberdade intrínseca;
de certa forma, transparece aqui o mesmo tipo de argumento que
pretendeu proibir Saramago de publicar o seu Jesus Cristo e condenou
Salman Rushdie à morte por supostamente ofender Maomé.
No fundo, o que temos de fazer é uma escolha antiga, e
de natureza política: ou vivemos sob um contrato social
leigo, ou sob um contrato social religioso.
Uma questão afinal inescapável - é o que
podemos sentir com a leitura de "Se não agora, quando?"
(Companhia das Letras), do escritor italiano Primo Levi (1919-1987),
de família judaica, que sobreviveu ao horror de Auschwitz
e narrou sua história em vários livros autobiográficos,
como "É isso um homem?" (Rocco) e "A trégua"
(Companhia das Letras). Químico por profissão, sentiu
depois de Auschwitz "uma vontade absoluta de escrever",
como afirmou em entrevista; "não apenas um dever moral,
mas como uma necessidade psicológica". Escrever é
organizar; é dar sentido, algum sentido, à massa
bruta dos fatos - no caso dele, à mais lancinante seqüência
de fatos que um homem do século XX poderia viver.
Mais tarde, passou a escrever ficção, e "Se
não agora, quando?" pertence a essa fase. O livro
narra a dura luta de um grupo de judeus desgarrados do Exército
Vermelho no final da Segunda Guerra (de julho de 1943 a agosto
de 1945), que se organizavam em bandos de resistência, nos
territórios ocupados pelos alemães, e se encarregavam
de ações de sabotagem. O fio da narrativa é
Mendel, um relojoeiro russo. Perdido em meio às bombas,
precisava decidir se se juntava aos grupos da resistência
"e a escolha era difícil; de um lado havia o seu cansaço
velho de mil anos, o seu medo, a repugnância pelas armas
(...); do outro, havia pouco. Havia aquela pequena mola retraída,
que talvez fosse o que no Pravda era chamado 'o sentido da honra
e do dever' mas que talvez fosse mais apropriado descrever como
uma necessidade muda de decência".
O impulso documental do livro pesa mais que o romanesco (e a bibliografia
no final do volume indica isso); a narrativa avança horizontalmente
acompanhando com riqueza de detalhes aquele grupo através
de um mundo hostil em todas as suas faces, até chegar em
Milão, na Itália. A urgência da fuga e o acúmulo
de fatos - uma sucessão tensa de episódios (freqüentemente
temperados com a clássica auto-ironia judaica) cuja lei
primeira era a pura sobrevivência - não dão
espaço ao aprofundamento de personagens ou à complexidade
estrutural. O personagem central é, de fato, uma entidade
coletiva: o judeu asquenaze (da Europa oriental, de cultura iídiche,
ao contrário do sefardim, de origem ibérica), o
judeu camponês cujo inimigo não é apenas Hitler,
mas o milenar sentimento anti-semita de todas as tribos por onde
viveu. Como diz o líder Gedale ao tenente polonês
da resistência, o "evangelho" de Hitler foi aprendido
por todos: "russos, lituanos, ucranianos, croatas, eslovacos".
Enfim: "Diga-me, tenente: somos seus hóspedes ou seus
prisioneiros?".
Daí perpassa pelo livro um certo toque épico - o
que exige uma visão de mundo além do indivíduo
e cria uma quase inevitável idealização.
Primo Levi, através da simpatia que sente pelos seus personagens
(definidos sempre por traços pitorescos, a "inocência
do homem simples"), faz uma longa reflexão sobre o
destino do povo judeu - que também é uma escolha.
Uma escolha que, no seu otimismo de essência, revela o messianismo
ancestral que afinal de contas põe Deus e Marx no mesmo
projeto: "Não queremos os colcoses de Stálin:
queremos comunidades em que todos sejam livres e iguais, sem constrangimento
e sem violência; em que se possa trabalhar arduamente durante
o dia, e à noite tocar violino; em que não haja
dinheiro, mas cada um trabalhe segundo sua capacidade e receba
segundo suas necessidades."
voltar
|