|
W. Rio Apa: as trilhas
da Utopia
Revista Letras - UFPR - N. 50, P. 59-71 - JUL/DEZ
1998. ED. UFPR
Cristovão Tezza
Wilson Galvão do Rio Apa, ou simplesmente W. Rio Apa,
como assina sua obra, é uma das figuras mais originais
da literatura paranaense. Nascido em 1925 em São Paulo,
capital, passou a infância e adolescência no Paraná.
Na juventude, dedicou-se ao jornalismo e à literatura,
formando-se em Direito em 1949 na UFPR. Em seguida, embarcou como
marinheiro, viajando pelo mundo durante dois anos. De volta ao
Brasil, fixou-se no litoral paranaense, onde, ao lado de uma vida
de ilhéu e velejador aventureiro, exerceu intensa atividade
jornalística.
Esta primeira fase de sua vida já determina qual seria
o perfil do escritor. Ao longo dos anos 50, publicou artigos semanais
nos jornais O Estado do Paraná e Última Hora (de
São Paulo), em que relatava experiências pessoais
de sua vida exótica de marinheiro e ilhéu, entremeadas
de reflexões filosóficas. Uma série deles
(1951-52) tinha o título de "Tentativa de uma grande
síntese", o que já nos dá uma medida
de seu projeto; outra série (1954), "Experiências
com a solidão", narrava os trinta dias que passou
sozinho numa ilhota do litoral. Mais tarde (1957-58) escreveria
semanalmente no jornal A Tribuna, de Santos, relatos de suas viagens
num pequeno barco, junto com a família. Esse contato com
o mar e com a vida da pesca que marca a biografia de Rio Apa se
tornará um dos elementos centrais de sua literatura.
Desde então, a marca registrada da visão de mundo
de W. Rio Apa será entender a atividade artística
como parte integrante e inseparável da própria vida;
metaforicamente, podemos dizer que seu sonho, desde então,
foi fazer da própria existência uma obra de arte.
Também desse período - que mereceria uma abordagem
mais aprofundada e que aqui apenas resumimos em linhas gerais
- podemos extrair alguns pressupostos filosóficos que vão
aparecer ao longo de todo o seu trabalho. Um deles, o mais forte
talvez, é a idéia rousseauniana do "bom selvagem",
que W. Rio Apa desenvolverá de um modo evidentemente não
ortodoxo, conciliando-a com um misticismo de traços orientais.
Em suma, a natureza tem uma "alma", e todo o seu projeto
de escritor será também um projeto ético
que nos dê a chave para viver em equilíbrio com ela.
Se lembramos que este projeto já se articulava nele, plenamente,
nos anos 50, Rio Apa se revela um precursor dos discursos que
serão dominantes nas décadas seguintes, dos hippies
aos ecológicos.
Também desta primeira fase se afirma outro traço
sistemático de seu trabalho: a literatura vai se transformar
em bandeira de outras causas que não a de um estrito projeto
estético. Freqüentemente, o traço efêmero
desse trabalho é objetivamente assumido. Nessa perspectiva,
compreende-se o caráter na aparência "errático"
de sua obra, que do ponto de vista formal foi se construindo aos
saltos e desvios, e não por meio de uma lenta elaboração
esteticamente unitária. Também daí pode-se
compreender a alternância entre a atividade literária
e a teatral. Aliás, o teatro vai aparecer na sua vida não
como uma forma propriamente literária, mas como algo que
realiza a negação da literatura. Seu teatro - que
começa a aparecer no final dos anos 60, fiel ao espírito
do período - desce dos palcos, vai às ruas e às
praças, livra-se do texto fixo e valoriza o improviso;
em alguns experimentos, chega a recusar a palavra.
Assim, antes de considerarmos a literatura, vejamos de passagem
o teatro de W. Rio Apa, que acompanhei pessoalmente de 1967 a
1984, participando de sua comunidade de teatro em Antonina, litoral
do Paraná, e mais tarde em Florianópolis. De sua
ampla produção teatral, cujos textos (ou roteiros,
no caso de sua última fase) permanecem inéditos,
marcamos aqui alguns momentos. O primeiro deles é ainda
estritamente literário; trata-se de O pequeno solitário
(1968), uma adaptação do conto homônimo incluído
na coletânea No mar das vítimas. Nessa peça,
todos os elementos convencionais da carpintaria teatral são
respeitados, tais como o uso tradicional dos limites do palco,
texto fixo, marcações rígidas, preocupação
com o acabamento formal, etc. A montagem dessa peça, nos
idos conturbados de 68, teve a marca do tempo: o texto foi primeiramente
levado em Antonina, no auditório de um sindicato, com grande
sucesso. Em seguida, contando com a voz gravada de Paulo Autran
(fazendo um personagem que não aparecia em cena), a peça
foi montada no Teatro Guaíra, onde se apresentou apenas
dois dias. No terceiro, o palco foi fechado com andaimes por ordem
do então governador Paulo Pimentel, para impedir a montagem
de Navalha na carne, de Plínio Marcos, que seria apresentada
a seguir, interrompendo abruptamente a montagem de Rio Apa. Com
protestos e uma passeata de que participou uma fatia da classe
teatral da cidade, O pequeno solitário foi transferido
improvisadamente para um espaço do Diretório Central
dos Estudantes, e mais tarde para o então Teatro de Bolso,
na praça Rui Barbosa. (Anos mais tarde, a peça seria
remontada por Antônio Carlos Kraide e transformada num especial
da TV Cultura de São Paulo.)
No ano seguinte, acontece uma ruptura radical: com o Monólogo
da violência e o Monólogo da dor e da culpa, Rio
Apa descarta não só o texto fixo, mas a própria
palavra, propondo um teatro de catarse em contrapartida a uma
arte que, limitada racionalmente a um texto escrito, lhe parecia
então morta e sem perspectivas. Mais uma vez, estamos diante
de um trabalho que se recusa a ser apenas um objeto estético;
na verdade, a proposta de Rio Apa supõe uma atitude diante
da vida, uma revolução pessoal. O seu teatro sem
palavras deveria representar o mergulho do ator em sua realidade
subterrânea, digamos assim, para "purificá-lo",
retomando o clássico sentido aristotélico sobre
a função catártica da tragédia. Abandonando
os palcos convencionais, apresenta suas peças em bares
e locais públicos de Curitiba e São Paulo - a proposta
assumida por ele terá pontos de contato com a teoria do
polonês Jerzy Grotowski e seu espetáculo ritual fundado
em arquétipos e centrado no ator, que só mais tarde
chegaria ao Brasil. O próprio grupo teatral que começa
a se consolidar em torno da figura carismática de Rio Apa,
numa atividade fervilhante de que tenho viva (e ótima)
memória, e que se tornará o Centro Capela de Artes
Populares, em Antonina, era na verdade uma comunidade vivendo
um projeto existencial do qual o teatro significava apenas uma
das faces.
Na fase imediatamente seguinte, Rio Apa recupera parcialmente
o texto, propondo agora um teatro poético de temática
popular, mas sempre centralizado na catarse e na liberação
emocional. Para ele, esta seria a essência do teatro que
cumpria fazer renascer. O teatro deveria ser uma espécie
de rito existencial, e a comunidade de atores a realização
concreta de uma vida alternativa. Nos anos seguintes, o grupo
montou O julgamento do homem (1970), O esperado
(1971-1972), Os médiuns (1972) - esta proibida pela
censura e liberada a duras penas, somente para festivais, por
interferência direta de Paschoal Carlos Magno -, As fúrias
(1972), uma recriação de Oréstia, de Ésquilo,
e O templo das sete confissões (1973), peças
apresentadas em vários festivais de teatro (Arcozelo, Londrina,
São José do Rio Preto, Goiânia, Caruaru).
Em 1975, com a Paixão de Cristo segundo todos os homens,
Rio Apa chega a uma forma de espetáculo total, de fundamento
popular, que representa o ponto alto de seu projeto dramático.
Desde então, representou anualmente durante a Semana Santa
- primeiro em Alexandra, Paraná, e a partir de 1977 nas
dunas da Lagoa da Conceição, em Florianópolis
- uma Paixão de Cristo por princípio descompromissada
de proselitismo religioso, num espetáculo ao ar livre de
dois dias que envolve cerca de uma centena de atores e é
aberto à participação da platéia.
Com o objetivo de eliminar (ou pelo menos suavizar) a fronteira
entre a assistência e os atores, o espetáculo aceita
desde cenas fixas com diálogos elaborados (mas com ampla
margem de improviso e criação própria), até
a liberdade de cenas paralelas em meio ao povo, refeições
comunitárias, discussões, debates, movimentos de
massa, etc. A cada ano, a figura de Cristo ganhava uma face diferente:
o revolucionário, o santo popular, o quixote, o poeta,
e até mesmo, surpreendentemente, o ateu - Cristo recusando-se
a ser Deus em meio a um povo que exige dele esse papel.
Naturalmente, essas montagens eram muito mais do que simplesmente
"peças de teatro". O primeiro dado é que
quase ninguém da platéia assistia a todo o espetáculo,
mas só a partes dele; o público de quinta-feira
à noite, por exemplo, que acompanhava as cenas dos profetas
do Velho Testamento, nem sempre era o mesmo de sexta-feira pela
manhã, com a chegada de João Batista anunciando
o Messias. A platéia atingia seu máximo nas cenas
da crucificação, no final da tarde de sexta-feira.
Outro aspecto a lembrar é o fato de que, à parte
dois ou três atores profissionais convidados, todo o resto
do elenco era composto de amadores ou mesmo pessoas comuns subitamente
envolvidas num projeto de teatro, de acordo com a idéia
central de Rio Apa de unir a arte e a vida. É claro que
o resultado cênico em muitos momentos não poderia
ser julgado com a fria régua do teatro profissional; a
Paixão não era exatamente uma peça, mas um
acontecimento, ou um happening, para usar uma expressão
dos anos 70. Finalmente, a intenção de questionar
a figura clássica e acadêmica de Cristo acabava esbarrando
na fé popular de parte substancial da platéia; por
mais diferente que fosse o sermão da montanha apresentado
em cena, o público acabava por ver nele nada mais do que
a repetição bíblica, a merecer devoção
e não postura crítica. De fato, não era mesmo
intenção do teatro do Rio Apa, desde o início,
provocar uma reação racionalizada na platéia;
a sua intenção sempre foi a de criar envolvimento
emocional, para ele o cerne do teatro. Daí a proximidade
que o teatro de Rio Apa assume, declarada ou veladamente, com
práticas terapêuticas, no sentido aristotélico
da catarse: purgar as emoções e assim tornar o homem
melhor.
O projeto teatral de Rio Apa tem formalmente muitos pontos de
contato com a vanguarda daqueles conturbados anos 60 e 70, não
só do Brasil como também da Europa, lembrando por
exemplo a presença de Grotowski, do Living Theatre (de
Julian Beck e Judith Malina) e a influência anterior, mais
profunda, de Antonin Artaud (O teatro e o seu duplo). O abandono
do palco italiano, a fragmentação do texto, o despojamento
do ator, a idéia da arte como atitude, e não como
objeto são alguns dos traços que aproximam Rio Apa
da linguagem revolucionária daquele tempo. Porém,
essa mesma forma transformadora, comum aos movimentos da época,
em muitos pontos veiculava uma visão de mundo que pode
ser considerada ideologicamente conservadora: a doutrina que se
subentende nos "arquétipos" rioapeanos, o trabalho
com categorias universais pressupostas (daí sua irresistível
atração pela temática religiosa) e um certo
toque messiânico são alguns exemplos. Talvez o ponto
central esteja na descrença da razão como uma categoria
positiva (ou suficiente) de reconhecimento do mundo - também
esse aspecto, é verdade, fazia parte da linguagem de combate
daqueles anos. Lamentavelmente, entretanto, Rio Apa nunca chegou
a formalizar uma "teoria do teatro", uma teoria que
só nos resta depreender das próprias realizações
e de alguns artigos avulsos que ele escreveu à época.
Outro aspecto que limitou o alcance de seu trabalho foi, a um
tempo, estar fora do eixo Rio-São Paulo, praticamente exilado
em Antonina, e trabalhar rigorosamente com recursos do próprio
bolso e com um grupo de atores amadores. A comunidade de teatro
de Antonina era, afinal, extensão da sua própria
casa.
A literatura de W. Rio Apa seguiu uma linha semelhante, no que
diz respeito à não obediência a um padrão
convencional, embora nela o rompimento tenha sido muito mais demorado.
Seu primeiro texto, cujos originais se perderam, data de seu tempo
de estudante: a novela radiofônica Caminho dos deuses.
Somente em 1956, quase no fim do seu período jornalístico,
aparece seu primeiro romance, Um menino contemplava o rio,
início de uma trilogia ("Introdução
ao Amanhã") que nunca chegou a ser concluída;
o segundo volume (O novo Deus), escrito em 1961, permaneceu
inédito, e o terceiro ficou apenas no projeto, quando sua
literatura tomava outra direção. Seu primeiro livro
dá sinais de uma trilha estética da qual Rio Apa
logo se afastaria.
Romance difícil e de construção sofisticada,
entrelaça narrativas num espaço estranho: parte
da história passa-se no litoral da Venezuela, e outra numa
viagem de navio. A linguagem fragmenta-se em cortes que se destacam
graficamente no espaço da página; em nota de rodapé,
Rio Apa explica que tais recortes têm a intenção
de ressaltar "a veracidade e intensidade expressiva da ação
subjetiva das personagens" . Eis um exemplo escolhido ao
acaso:
O primeiro toque grave, profundo e a sua ressonância
surpreendeu o mestiço que começou a acompanhar
o badalar:
a sucessão de sons... as vibrações,
o balanço dos sinos: as mãos puxando as cordas.
As notas seguiam-se lentas, espaçadas,
enchendo-lhe o corpo de vibrações que lhe arrepiavam
a epiderme. Momentos depois a alegria mostrava-se no seu rosto.
Depois deste romance, a temática de W. Rio Apa volta-se
para o mundo urbano, ou, mais propriamente, contra o mundo urbano,
que se lhe afigura como um espaço incompatível com
o desenvolvimento das potencialidades criativas do homem. Nesse
sentido, sua literatura ganha nesse momento, nitidamente, um caráter
de "tese" que jamais o abandonará - é
interessante observar que o traço que será a marca
registrada de Rio Apa será também o seu limite estético,
que afinal (nos anos 90) transbordará para a escrita de
textos diretamente místicos e filosóficos. Em 1965
escreveu A proporção correta (inédito), narrando
o pânico de uma grande cidade que se vê invadida por
animais venenosos, e, em seguida, A Revolução dos
homens , romance que conta a história de um lavrador cujas
terras são invadidas pela expansão da metrópole,
e que, reduzido à miséria, dá origem a um
movimento subversivo ecológico (para usar uma palavra de
hoje). Visto a distância, A revolução dos
homens se inscreve nas inquietações do final dos
anos 60 e da instauração da ditadura militar no
país. A resposta de Rio Apa, entretanto, tem um substrato
romântico e anarquista; a revolução necessária
seria não a revolução política de
natureza pragmática, mas outra, de "essência".
Veja-se este trecho:
De pé, incontrolado, o poeta atingia
o paroxismo de sua revolta. Os amigos, preocupados, sondavam
a entrada do bar e os fregueses que esqueciam suas bebidas e
ouviam. Queriam interrompê-lo, e não podiam: a
mensagem empolgava-os.
- Torpe progresso! Seus sucessos jamais compensarão o
estado a que levou o homem! A única salvação
reside na consciência de cada um. Temos que continuar
caçando, dentro de nós, todos os monstros, prraa!
da psicodialética, da despersonalização,
prraa! TV, imprensa, prraa! pedagogia utilitária, prraa,
prraa!
Armindo agachou-se atrás do balcão e prosseguiu
no tiroteio visando os produtos enlatados que se enfileiravam
nas prateleiras.
- Ou nos tornamos caçadores em nossa própria mente,
atirando sem parar com a arma da consciência ou também
nós acabamos como os milhões de zumbis ideológicos
russos; sorridentes robôs americanos que disparam bombas
atômicas nos seus semelhantes. E são estes dois
tipos trágicos que nos querem impingir como modelos ideais
do homem moderno. Sejamos brasileiros, isto sim! Bem e profundamente
brasileiros, resguardando a matéria-prima que ainda somos,
principalmente através desta muito nossa quebra de corpo,
esse divino sai pra lá! comigo não, o que é
que há? que nos salva da idolatria a tiranos, dogmas,
violência, disciplina em excesso e nos mantém na
retaguarda do erro progressista. Sejamos assim reservas para
a salvação humana, por quanto tempo seja possível
e ainda venceremos os atuais deuses fardados com as nossas piadas,
gozação como nunca, com a nossa música
popular. Viva a África!
As palmas dos fregueses, os bravos de Jeremias, os assobios
de Xixo: o poeta foi abraçado, levantado nos ombros.
Num canto, o camponês comovido fungou.
Sucederam-se brindes revolucionários.
Neste trecho curioso encontramos a síntese da crise deflagrada
pelo golpe de 64. Era um tempo esquemático: zumbis ideológicos
russos, robôs americanos: contra eles, a ginga brasileira.
E o valor da "consciência", uma categoria essencial
na cosmovisão rioapeana, que parece decorrer não
de um processo histórico, mas da própria natureza
humana. O progresso "torpe" é o inimigo. A proposta
de Rio Apa, oculta nos traços anarquistas, tem uma raiz
claramente rousseauniana. Aliás, a revolução
de que trata o livro é também uma revolução
ecológica, que àquele tempo, na perspectiva do romance,
seria o verdadeiro terror do sistema. Se hoje esse projeto parece
irremediavelmente datado, para uma parte da minha geração
- e eu me incluo inteiro aí - tinha um apelo irresistível.
Após esse interregno urbano, Rio Apa retorna à temática
do mar com No mar das vítimas , um livro de contos. Esta
obra de certa forma marca o seu impasse estético, ou o
descompasso entre a sua visão de mundo e a sua linguagem.
A temática aqui é rigorosamente a sua: narrando
a vida de pescadores isolados do mundo urbano, Rio Apa pode desenvolver
e aprofundar a sua visão de mundo mais cara; os pescadores
serão a matéria-prima que comprovará sua
tese. Entretanto, o descompasso surge pelo fato de que, embora
ele domine a técnica romanesca moderna, o que ele provou
desde as incursões experimentais de Um menino contemplava
o rio, Rio Apa na verdade nunca se sentiu à vontade com
a descentralização ideológica que tal prosa
supõe. Mais do que na literatura, na verdade ele sempre
esteve interessado na doutrina; para ele, a prosa de ficção
é claramente um meio de veicular um discurso filosófico
unitário, homogêneo e fechado. Assim, em No mar das
vítimas, talvez o seu livro "convencional" mais
bem-sucedido, encontramos, ao lado dos traços pitorescos
de um clássico Brasil rural, pré-urbano, de substância
romântica, um narrador atento que não perde o momento
de chamar a atenção do leitor para os significados
ideológicos daquele mundo. Veja-se, a propósito,
o trecho seguinte, do conto "Fandango II", em que o
personagem Nato rema desesperadamente para salvar o filho da morte:
Chlan! Chlan!
- Se o coitadinho morre, juro que faço mais dez filhos!
Chlan!...
Exatamente! A fome e a tua violenta multiplicação.
Estas são as tuas invencíveis armas ante a qual
os poderosos tremem. O medo crescente aos bilhões de
Natos esfaimados que não cessam de gerar filhos incontáveis;
ninhadas e ninhadas a chorar e a morrer agora, a exigir ameaçadoramente
amanhã a comida que eles não te ensinaram a produzir,
e o pouco que primitivamente produzes, roubam-te pelo preço
vil que te pagam. Mas não te desesperes, Nato. Tua grande
e implacável Mãe já desencadeou a vingança
através desse teu procriar desenfreado, inelutável
que os apavora, espanta, porque não podem controlá-lo
e só poderiam repartindo contigo as riquezas que acumulam.
Isto farão somente à força; a força
da tua fome e do teu número espantoso. Oh! eles sabem
que dentro de poucos anos, serão os Natos que superlotarão
a terra.
Chlan!
Neste conto, o discurso doutrinário reina absoluto, mas
do ponto de vista da linguagem No mar das vítimas se insere
em geral na melhor tradição do regionalismo brasileiro,
no sotaque das expressões, na sintaxe típica, nos
traços pitorescos narrados por alguém que não
é do meio (o que se denuncia, entre outros sinais, pelo
uso sofisticado do mais-que-perfeito) e na boa qualidade do texto.
Veja-se:
Comia de tudo a maldita, porém, seu prato
predileto era mesmo gente: perna balançando em borda
de canoa - o Zeferino manco que conte; braço descuidado,
mergulhando demais na hora de recolher o espinhel ou no instante
de meter o bicheiro e embarcar a prejereba, como acontecera
ao falecido Juvêncio; bêbado que caísse na
água, como depois daquele fandango no Superaguy - ninguém
mais viu o Calado, só ouviram o baque e, no reflexo da
lua, o lombo da desgraça; moça... ah! pobre das
moças: "Tem raiva é delas" dizia, sempre,
a mais velhinha que passara na juventude o seu grande susto
com a "lixeira", numa tarde de noroestado, quando
se banhava nas espumas do lago-mar.
Independentemente de qualquer outra consideração
estética, este livro permanece como uma obra significativa
que tem como geografia e pano de fundo o litoral do Paraná,
um espaço que aparece sob um registro assumidamente realista.
E é justo nesse momento (1968) que Rio Apa abandona a literatura
e passa se dedicar ao teatro, num processo de "desencanto",
já que só lhe restava, nas palavras dele, em entrevista
a Torrieri Guimarães, "escrever para as elites decadentes,
burguesia de leitores cada vez mais escassos" . Até
1977 publicou apenas o romance juvenil O menino e o presidente
, uma narrativa assumidamente didática, de grande sucesso,
que o próprio autor classifica como um acidente na sua
carreira de escritor.
É com a tetralogia Os vivos e os mortos que Rio
Apa retorna à literatura, produzindo a sua obra de maturidade
e certamente a síntese mais feliz de sua escrita. Neste
romanceiro, Rio Apa despoja-se completamente das marcas de linguagem
que distanciavam o narrador de seus personagens (no caso do livro
de contos) e procura realizar afinal uma arte de raízes
para ele autenticamente populares. A tese continua viva: para
Rio Apa, "só é grande a arte capaz de ser povo",
porque é sempre o povo que "salva e faz renascer a
cultura-vida; ele, o povo que ainda está com o pé
na terra, nas praias, que é raiz" . Claro que o conceito
de povo não é um dado a priori, e simplificá-lo
desta forma será uma operação filosoficamente
arriscada. Mas estamos ainda no terreno da literatura, e para
ela não interessa o ponto de partida; apenas o de chegada.
Nesse sentido, como resultado, esta obra é uma guinada
em outra direção: Os vivos e os mortos se
destacam em muitos aspectos do conjunto dos trabalhos de W. Rio
Apa. A linguagem aí faz toda a diferença: não
é fácil descobrir o parentesco entre o narrador
da tetralogia com o autor de qualquer dos seus outros livros.
Podemos dizer que, tomando a língua como referência,
Rio Apa "esqueceu" sua própria obra e começou
tudo de novo.
Os vivos e os mortos contam a história de um povo,
sua grandeza e decadência, num registro literário
que incorpora elementos fantásticos e mágicos. Assim,
embora haja alguns sinais de que seu espaço seja o do litoral
do Paraná, a geografia da narrativa suprime qualquer outra
referência espacial que não ela mesma; não
caberá aí, portanto, o selo "regionalista"
no sentido comum do termo, porque não se trata de um espaço
que se contraponha a outro. Rio Apa debruça-se sobre um
mundo que representa um espaço "único".
Nesse espaço - ou nesse universo - a narração
trabalha uma série de histórias entrelaçadas,
tendo como eixo dois ciclos: a vida do Santo Menino, contada nos
dois primeiros volumes, e a vida do espia Eleé, nos dois
últimos. Em torno dessas duas figuras míticas gravitam
os personagens principais. Podemos definir a obra como uma narrativa
épica, no sentido clássico do termo. Para tornar
verossímil este mundo épico hoje, Rio Apa lança
mão de um conjunto de recursos de linguagem que irão
simular o universo épico com todas as suas necessárias
relações ideológicas. Ao lado da geografia
única, o tempo na obra representa uma "teogonia",
um começo e um fim absolutos; é o tempo inexorável
que vem de um passado mítico para um futuro apocalíptico
sem propriamente tocar o tempo presente; o passado, na melhor
tradição épica, é a expressão
da perfeição absoluta; a natureza - mais uma vez
encontramos Rousseau - é sempre um valor positivo também
absoluto.
Esta visão de mundo perfeitamente articulada se realiza
- e aqui a grande originalidade do texto - por uma linguagem que
em nenhum momento "abre a guarda" para qualquer traço
contemporâneo, moderno ou problemático que pudesse
invadir a obra com um ponto de vista ideologicamente conflitante
. Daí a preponderância da ordem direta e da conjunção
"e" (implícita ou explícita); o vocabulário
de raiz historicamente popular (há pouquíssimas
proparoxítonas no romanceiro - apenas 13 - , que como se
sabe são palavras que entraram na língua pelas vias
da elite letrada ao longo dos séculos XIV e XV); uma prosa
poética que, pelo ritmo e pela própria disposição
gráfica procura envolver o leitor (ou mais apropriadamente
o ouvinte) no seu "canto de sereia"; e, o mais surpreendente
como recurso retórico de conciliação, a ausência
de conjunções adversativas ao longo dos quatro volumes.
Para não dizer ausência total, encontram-se cinco
expressões adversativas, como "só que",
expressões a rigor suavizadas.
Por meio desses recursos, a narrativa inteira ganha um estado
absoluto de unidade de linguagem, entendida como um ponto de vista
soberano sobre o mundo e articulado de um modo que impede a sua
quebra, contestação ou fissura por qualquer outra
voz. Como ilustração, veja-se o trecho seguinte
sobre a "febre do Mal" que assolou a região:
A febre do Mal ficou um pouco mais fraca no
povo coa mudança da Lua e do Vento trazendo pra terra
o frio do Sul
Também a fraqueza da fome já era tanta que pouca
gente saía pras maldades da noite foi então que
as tintureiras subiram a costa procurando as tocas mais quentes
do Norte e as tainhas seletas apareceram nas barras
Dando graça, os homens se juntaram nas redes, carregaram
as canoas e foram pros pontos de espera nas praias de fora enquanto
as mulheres se fazendo de santas pegaram as trilhas cos filhos
no colo e puxando carrinhos cheios de trastes no caminho cortaram
folhas de guareicana, amarraram a palha nas varas e cobriram
de novo os ranchos da praia
começou aí a espera dura das tainhas do corço
de dia atrás das canoas varadas pegando a sombra do Vento
de noite junto ás fogueiras esperando o grito do vigia
que agüenta sozinho no ponto o frio lá fora q'nem
Aristeu que anda pra cima e pra baixo na praia escutando a fala
dos peixes
Na escuridão o Mal ainda rondeia
Encerrado o ciclo de Os vivos e os mortos, Rio Apa voltou-se
para o ensaio, com o Manifesto do povo , em que procura fundamentar
o seu conceito de cultura de povo, que ele contrapõe à
"cultura urbana". Aqui seu trabalho assume declaradamente
um caráter doutrinário, mesmo quando sob forma literária.
Publicou então dois outros livros sob a forma gráfica
de jornal , em que o domínio do estético já
não guarda senão pálidas fronteiras com o
da filosofia, da biografia, do teatro e da prática existencial,
fundindo todos os discursos num só. Sua mensagem central,
nesta fase, compreende a idéia - inegavelmente fiel ao
seu ponto de partida, no início dos anos 50 - de que a
cultura urbana chega ao fim, e postula a utopia de uma vida renovada
pelo retorno aos valores essenciais da natureza e pelo homem do
povo que nela vive integrado. Atualmente, vivendo na Praia da
Pinheira, no litoral de Santa Catarina, Rio Apa dedica-se ao ensaio
de natureza filosófica . A epígrafe de seu penúltimo
trabalho - "Não é o homem que é sábio.
Mas sim a Vida" - já nos dá uma pista do caminho
atual de sua metafísica. O que é uma outra história,
a merecer outro estudo.
Enfim, qualquer que seja a avaliação que se faça
do trajeto de W. Rio Apa, dos tempos de marinheiro aos últimos
ensaios, o fato é que o conjunto de sua vida e de sua obra
e o caráter multifacetado de sua arte jamais perderam de
vista um nítido ponto de liga, que é a dimensão
da Utopia. Para um final de século tão esterilizado
de sonhos como esse que vivemos, as trilhas seguidas por ele permanecem
vivas como um contraponto necessário que tem muito a nos
dizer.
voltar
|