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O olhar do absoluto detalhe
Folha de S. Paulo, 20/12/1998
O filantropo, de Rodrigo Naves
Cristovão Tezza
Em suas 91 páginas e 38 textos, O filantropo, primeiro
trabalho ficcional do crítico de arte Rodrigo Naves, desafiará
o leitor a descobrir a charada: afinal, que livro é este?
A bela capa traz, além do título, nome do autor
e nome da editora, uma pequena régua azul sobre fundo branco.
É uma boa pista: os textos de Rodrigo Naves são
costurados a régua, centímetro a centímetro,
peças isoladas que parecem ter em comum apenas a lenta
respiração de um narrador cansado e fragmentário,
de frases curtas, às vezes obcecado pela ordenação
do mundo, mas cujo olhar se fecha assim que alguma imagem toma
corpo; para recomeçar na página seguinte, em outra
face.
A questão do gênero talvez também angustie
o leitor: descobrir, afinal, qual o território literário
dos textos, em que mundo eles se movem; em suma, descobrir em
que linguagem as palavras se agarram para dizer o que nos dizem.
Num momento, o texto será puramente notícia, como
em "Eugène Varlin (1839-71)", ou "Rosemiro
dos Santos (1944-91)"; mas a secura da informação
("Na Federação Paulista de Pugilismo sua ficha
acusa sessenta e quatro lutas entre fevereiro de 1960 e julho
de 1968", ou "Eugène Varlin nasceu no dia 5 de
outubro de 1839, na pequena cidade francesa de Voisins, filho
de Aimè-Alexis e Heloise Varlin"), essa estrutura
de verbete de enciclopédia se contamina sutilmente de irrelevâncias
("E cuidava com grande carinho de umas plantas que dispusera
em volta das árvores da rua") e intromissões
inexplicadas ("Na minha imaginação, levava
uma vida pobre mas decente"). Além disso, os textos
estranham-se uns aos outros. Como se a linguagem, aos pedaços,
perdido o fio da intenção, revelasse aqui a ali
apenas os sinais de sua ruína.
Às vezes, ela é um atravancamento exasperante de
lugares comuns, como no parágrafo da página 65:
"convicções inabaláveis", "a
amizade acima de tudo", "lealdade sem limites",
"sentido de justiça aguçado", "amar
perdidamente", "calma tão almejada" - como
não transpira nem a ironia, nem o pitoresco, o lugar comum
parece resvalar para o lugar nenhum, exceto pela sutileza do título,
que dá a chave do texto: "Princípios".
Em outros momentos, os melhores do livro, o sexo aparece pervertido
pelo olhar do absoluto detalhe ("Há porém tal
discrepância entre carícias e penetrações
que custa encontrar uma passagem que conduza de um lado a outro"),
e nesse horizonte Rodrigo Naves alcança a tensão
mais alta e mais delicada, com certeza a ambição
central do seu livro, plenamente realizada nos textos "Alvura"
(a epifania diáfana de uma freira que se toca) e "De
doze anos", em que uma espécie de Humbert Humbert,
o narrador de "Lolita", metodicamente preleciona sobre
a ausência de pêlos pubianos ("De fato, a higiene
é o cerne da questão").
O grande perigo que o escritor corre ao se aventurar pelo, digamos,
"não-gênero", é entregar-se à
chamada prosa poética, quando muito freqüentemente
a tensão se derrete em melodia e o narrador perde a sua
essência desconfiada. No caso de Rodrigo Naves, isso não
acontece; os seus textos tocam, firmes, o sólido chão
prosaico, uma certa dicção de conversa ("Dou
bons conselhos. Gosto de me ouvir dando bons conselhos";
ou, em outro momento, "Sou um homem feito, repito para mim
mesmo"). Daí transparece uma intimidade simples, que
vai crescendo em estranhezas e achados na relação
- ou mais freqüentemente na falta de relação
aparente - entre uma fala e outra. Uma relação muitas
vezes desproporcional entre a irrelevância do objeto e a
ginástica do discurso: "À medida que percebo
o efeito de minhas palavras sobre meu interlocutor, percebo que
uma profunda serenidade toma conta de todo o meu ser". O
resultado, como naquelas gravuras que se movem quando mudamos
a direção do olhar, é uma linguagem que,
respeitando as vozes sedimentadas do mundo, tateia os seus limites
sem alarde, gestos largos ou ênfases. No prazer da descoberta,
o leitor atento viverá a mesma emoção contida
do narrador, quando diz: "Chegado a esse ponto, de onde não
mais se vê o lugar de partida, resta apenas tocar para a
frente. Não ter para onde voltar e saber que não
é a partir daqui que inicio." Ou então repetirá,
como em "Destino", a alma da literatura: "O que
me trouxe aqui foi uma ordem antiga, de que não detenho
origem nem destino."
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