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O narrador camaleão
Folha de S. Paulo - 6/9/1998
Dinheiro Queimado, de Ricardo Piglia
Cristovão Tezza
Em uma cena do clássico "O Idiota" (1868), de
Dostoiévski, a imprevisível Nastassia Filipovna
joga ao fogo um pacote com cem mil rublos, para testar o pretendente
Gânia - que não se humilha a ponto de salvar o dinheiro,
mas desmaia. "Ele ainda tem mais amor próprio que
amor ao dinheiro", diz Nastassia. Dificilmente se verá,
com a força dramática deste teste desvairado, uma
ilustração tão cristalina do dinheiro como
medida de todas as coisas na nossa cultura civilizada. Cem anos
depois, a cena se repetirá de fato, com outros atores e
outros objetivos. Desta vez serão meio milhão de
dólares, que três bandidos encurralados resolvem
queimar, nota a nota, antes da morte que se avizinha a tiros,
num pequeno apartamento cercado por 300 policiais.
A partir deste fato real acontecido nos idos de 1965, o escritor
argentino Ricardo Piglia escreveu o romance "Dinheiro Queimado",
que a Companhia das Letras acaba de lançar, narrando um
assalto a banco numa província de Buenos Aires. O assalto
dá certo, mas os bandidos resolvem fugir sem repartir o
dinheiro com os sócios. Afinal, cerca de 40 dias depois,
numa sucessão de acasos, sobrarão apenas três
deles, concentrados em Montevidéu numa absurda resistência.
Se a história real já é por si insólita
e atraente, a sua reconstrução literária
resultou irresistível.
Como se trata de obra rigorosamente baseada em fatos reais, a
primeira referência que nos vem à mente é
o célebre romance do americano Truman Capote, "A Sangue
Frio", de 1965, também relato de um crime, que inaugurou
o "documentário ficcional", uma espécie
de cruzamento da literatura com o jornalismo. Mas enquanto Capote
quer chegar à utopia da "objetividade pura",
sob um narrador neutro e frio, Ricardo Piglia constrói
uma narração complexa, que retrabalha os dados concretos
do episódio (pesquisados nas mais diversas fontes da época)
assimilando camaleonicamente os diferentes pontos de vista, vozes
sociais, intenções, sotaques e universos de referência,
que vão passando, sem cortes, de um a outro. O narrador
de Piglia absorve como que por osmose a linguagem daqueles que
retrata.
Num momento, pensamos como os assaltantes: "Não há
nada pior do que a véspera (...), a pessoa vira vidente,
tem visões, qualquer coisa parece um sinal de má
sorte, um alcagüete à cata de movimentações
estranhas e que dá a dica para a polícia e te arma
uma cilada ao chegar (...)"; noutro, somos a imprensa: "As
rajadas dos meliantes eram de tiro muito rápido, razão
pela qual o chefe da polícia da Zona Norte da província
de Buenos Aires, delegado Silva, disse que reconhecia o uso de
metralhadoras Halcón, que sem dúvida foram roubadas
do Exército Argentino. Devemos lembrar-nos que (...) um
dos integrantes da quadrilha foi suboficial do Exército,
e assim torna-se explicável a resistência desses
poderosos elementos, que mantiveram nossa polícia à
distância." Depois, a voz do policial: "Estão
delirando, pensa Roque Pérez, bancam os machões,
porque estão pirados, com uísque, com bolinha."
E também os instantes de dúvida factual são
ficcionalizados, de modo que toda afirmação se relativiza:
"Blanquita Galeano, a concubina de Mereles, é (segundo
os jornais) uma mocinha de classe média, criada num lar
saudável e estimado pelos vizinhos de Caseros."
Nesse processo de descentralização narrativa, Piglia
tira do leitor a tranqüila estabilidade de um único
ponto de vista. E ao nos colocar no centro do massacre - e massacre
nos dois sentidos, da polícia e do ladrão - o texto
cria uma empatia complexa, polivalente, com os personagens em
relação não só com a questão
social em sentido estrito mas também com os valores morais
e éticos, a rigor subjacentes a todo gesto humano. O resultado
desse painel de vozes, à falta de uma referência
"normal" que nos dê algum sistema estável
de valores (a voz da imprensa, que poderia cumprir esse papel,
acaba por se resumir no lugar mais comum, no chavão mais
gasto, na sintaxe mais repetida), é um mundo sombrio, lúgubre,
irracional, em que existe apenas o crime, em todas as suas formas,
do homicida psicótico ao tira torturador, todos mais ou
menos funcionando na mesma lógica primeva; a luta entre
polícia e bandido é uma pura relação
de força física ou bélica, e não de
distinção social, moral ou ética, em nenhuma
instância. Assim, queimar o dinheiro que, afinal, era o
objeto da loucura, passa a ser a consumação metafísica
de uma liberdade impossível. E explica o fato de que esse
gesto provoque nas pessoas uma reação substancialmente
mais violenta do que as próprias mortes cometidas: "Só
loucos assassinos e animais sem moral podem ser tão cínicos
e tão criminosos a ponto de queimar quinhentos mil dólares.
(...) Indignados, os cidadãos que observavam a cena davam
gritos de horror e de ódio (...)." A partir daí,
os seres lúmpen que assaltam se transformam em "niilistas".
Ricardo Piglia garante a estatura literária do relato não
só pela entrega da narração às linguagens
em jogo, no campo delas mesmas, mas também por sustentar
e resumir em torno de Dorda, o "Gaúcho Louro",
uma figura patética que cresce ao longo do livro a ponto
de se tornar o seu eixo, todos os paradoxos que a história
levanta. "Dinheiro Queimado" é um romance de
primeira grandeza.
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