Ritos de Iniciação
Folha de S. Paulo - 9/8/1998
A boca do inferno, de Otto Lara Resende

Cristovão Tezza

Publicado originalmente em 1957 e reeditado agora pela Companhia das Letras, a coletânea de contos "A Boca do Inferno", de Otto Lara Resende, é uma boa porta de entrada para esse mineiro, morto em 1992 e pouco conhecido das gerações mais novas. O livro, de notável unidade estilística e temática, traz sete contos sobre crianças. À primeira vista, entramos numa típica literatura de um Brasil pré-urbano; sua geografia, um mundo inteiro ao alcance da mão - casas de portas abertas, quintais, árvores e pássaros, a igreja, o vigário, as calçadas por onde se cruzam pessoas que se conhecem -, terá tudo para reforçar a imagem de um espaço idílico próximo da natureza, com um doce sabor de infância. Nos toques pitorescos da linguagem ("o curió desdobrando gorjeios longos, dolentes", "o galo anunciou a paz no seu império"), no sotaque das expressões e nas formas congeladas de um tempo ("a rua escaldava", "guarda-comidas", "nuvens grossas anunciavam chuvas", "Isto são manhas", o cinema com "fita-em-série"), encontramos não o lugar comum, mas o lugar inevitável de um horizonte imóvel que representa uma das faces literariamente mais poderosas do imaginário brasileiro: "Floriano era o centro do mundo e a montanha, lá longe (...) dividia o mundo no lado de cá, conhecido, e no lado de lá, inexplorado (...)". Podemos dizer que, neste pano de fundo, Otto Lara Resende foi integralmente um escritor do seu tempo.

Mas este é só o ponto de partida. A linguagem que parece apenas confirmar a imagem idílica de substância otimista de um país rural, realiza tematicamente uma visão de mundo que desconcerta o leitor até o avesso. Tomando a criança como objeto, Otto Lara Resende desenvolve o que pode ser lido como sete estudos sobre a difícil fronteira entre o traço biológico e o traço cultural da conduta humana. Nessa vertente, ele se encontra com outra família literária, essa de alma anti-romântica - a do naturalismo. Em "Filho de Padre", o menino Trindade, tratado a pontapés pelo vigário, desfecha pontapés no seu cachorro - e o padre também terá sua resposta. Mas, em "O Moinho", situação semelhante é tratada de modo distinto; o menino Chico, incapaz de se livrar do padrinho algoz, vive uma reação radicalmente contrária. Assim, o olhar agudíssimo do autor para os mecanismos cotidianos, secretos e familiares da violência não perderá de vista a complexidade da natureza humana e a sutileza inapreensível de suas variáveis.

Cada um dos contos do livro flagra uma criança num momento limite de transformação, uma espécie de rito de passagem do puro "ser biológico", fisicamente integrado ao seu mundo (e o texto ressalta quase sempre a relação feliz com a natureza: "O sol anunciava um dia diferente; era claro, tão claro, e desvendava todas as coisas do quarto, alegres e matinais."), para o "ser ético", aquele que numa situação extrema escolhe o que fazer, empurrado por uma rede agressiva de circunstâncias ("Como se a decisão já tivesse nascido há muito dentro dele, prolongou o movimento e derramou o veneno na xícara de chá"). No universo de Lara Resende, as crianças são seres incompletos vivendo exasperadas num mundo incapaz de completá-las - "Era como um ritual de que ambos se tinham esquecido". Por conta própria, elas em algum momento serão obrigadas a abrir a porta sempre trágica do mundo adulto. Num sentido metafórico, "A Boca do Inferno" ilustra o triunfo de Darwin sobre Rousseau.

Entretanto, o leitor não sente o peso da "tese"; nenhum conto avança mecanicamente, numa relação chapada de causa e efeito. Ao contrário, do texto de Otto afloram sutilezas inesperadas, de um narrador que parece também ele estar descobrindo o que acontece, uma das marcas da boa literatura, e momentos de delicado lirismo. O conto "O Segredo" - uma história de assédio sexual - é um primor de entrelinhas e subentendidos na agressão da mãe e da avó sobre uma criança. Em "Namorado Morto" vemos o tenso e bonito relato de uma paixão feminina adolescente, equilibrando-se na exata fronteira entre a criança e a mulher.

A síntese de seu mundo talvez esteja no magnífico "O Porão", em que uma manhã comum de duas crianças brincando ao acaso vai, parágrafo a parágrafo, tomando um rumo sinistro. Um conto que o inglês William Golding, autor do clássico "O Senhor das Moscas", de 1954, que devolveu à criança o impulso agressivo subtraído por Rousseau, leria com prazer. Além de tudo, "A Boca do Inferno" é desses livros especialmente felizes que não se esgotam na primeira leitura.


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