A cidade vista da quitinete
Folha de S. Paulo - 14/6/1998
Fantoches, de Marcos Rey

Cristovão Tezza

Com 38 livros publicados desde a novela Um gato no triângulo, de 1953, passando por grandes sucessos na década de 60, como Café na cama, O enterro da cafetina e Memórias de um gigolô, Marcos Rey - ou Edmundo Donato, seu verdadeiro nome - é um desses raros escritores que vivem da literatura, sem se dedicar nem ao esoterismo, nem à auto-ajuda. No seu caso, parte do sucesso se deve ao direcionamento paradidático de sua obra, destinada a um público juvenil através de edições em que não falta um "suplemento de apoio", com um questionário sobre o livro que acaba transformando boa literatura numa tábua escolar de "respostas certas". Nada poderia ser mais chato depois da leitura de um autor saboroso como Marcos Rey.

Mas o que tanto atrai em Marcos Rey? A novela Fantoches, que a Editora Ática acaba de lançar, é uma boa amostra de seu texto e de seu mundo. O livro narra as aventuras e desventuras de Tito da Mata, filho de um crupiê de cassino clandestino que, de emprego em emprego - office boy de uma revista picareta, funcionário de uma grande empresa que tem um caso com a chefe e depois é demitido por ela, amante de uma atriz do teatro rebolado, showman num navio de passageiros, depois num cassino ilegal, que é fechado porque o proprietário converte-se a Jesus Cristo -, afinal se torna apresentador do programa de TV Feira de diversões. Na decadência, descobre Marino Rinaldi, o ventríloquo, e seu boneco Tataboy, que se tornam a sensação do país. Há também a mulher de Marino, a misteriosa Esmeralda, e um crime, que abre e encerra a novela.

O universo de Marcos Rey é o mundo urbano socialmente periférico ("Gostei de rever a São João do alto da quitinete") -, sempre à margem, uma marginalidade que representa a própria natureza da sociedade. Nela, tudo é móvel, inseguro, ilegal, desacertado, transformador. Na tradição da novela picaresca, Marcos Rey faz da vida um farejar permanente de oportunidades em que a esperteza, temperada pelo humor, é a única arma da sobrevivência. Mas é também um mundo de substância otimista, em que o pior dos vilões terá sempre um toque pitoresco de simpatia - o que nos revela que Marcos Rey é um escritor entranhado no forte imaginário da cordialidade brasileira. É igualmente um mundo com toques nostálgicos, em que sopra aqui e ali um certo ar dos anos 50. E, fundamentalmente, seu território é a cidade: "Depois do mar, agradava-me algo fixo, concreto e asfaltado."

A grande força de Marcos Rey reside não nessa moldura narrativa, mas no olhar agudo e na sua poderosa linguagem de cronista, um cronista muito atento à fala coloquial do espaço urbano e aos valores que ela expressa, uma fala que ele recria despojadíssima e vivaz, capaz de na mesma seqüência sintetizar décadas de gírias: "É mole? Um dos melhores carros da garagem da JKL. Dizem que chamava o governador de meu chapa. Passava os fins de semana em praias encantadas. E nas segundas narrava tintim por tintim, a uma platéia de malnascidos, episódios de sua felicidade aquática". Há súbitos cruzamentos de registros de linguagem que são uma delícia: "Eu não podia portar-me como se levara uma suburbana a uma pizzaria", ou "Outra pessoa desmaiara, a gentil coiteira dos amantes". Ao mesmo tempo, Marcos Rey usa sem pejo a linguagem mais comum atravessada por metáforas da oralidade, na representação dos sonhos de classe média, perpassados sempre por um tom de farsa: "Contratei dois garçons e encharquei a cobertura de uísque escocês e champanhe. Fora rei e continuava majestade". Ou, em outro momento: "Vinho francês é bom para puxar declarações de amor."

Também do bom cronista vem a ênfase permanente no instante mesmo da frase: como numa crônica de 40 linhas, a novela de Marcos Rey se faz parágrafo a parágrafo, e não pela estrutura narrativa. Há como que uma seqüência contínua de gags, sustentadas pelo diálogo enxutíssimo e por um ouvido atento e bem-humorado que, brincando, jamais vulgariza a voz da rua, por mais miúda que seja. Vêm daí, também, o poder e a graça da frase curta, sob uma ordem direta soberana, como se o narrador falasse, e não escrevesse. E escreve com tal arte, que ouvi-lo é sempre um prazer.


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