A vida polifônica de Mikhail Bakhtin
Revista Cult - maio de 1998
Mikhail Bakhtin, de Katerina Clark e Michael Holquist

Cristovão Tezza

Talvez a mais enigmática figura das ciências humanas do século XX tenha sido o teórico russo Mikhail Mikhailóvitch Bakhtin. Nascido em 1895 e morto em 1975, atravessou a vida inteira praticamente anônimo - sobrevivendo pelas frestas do acaso à Revolução Russa, ao exílio no Cazaquistão, aos expurgos de Stálin, à osteomielite (que lhe obrigou a amputar uma perna), ao silêncio gélido da cultura oficial do estado soviético, à falta crônica de dinheiro e de conforto, e, mais que tudo, ao fato de, motivado sempre pela escrita interminável de seus textos, quase nunca vê-los publicados.

Para situar o que dele se conheceu enquanto foi vivo, lembramos que publicou em 1929 um livro chamado Problemas da poética de Dostoiévski, que seria reeditado somente em 1963; e em 1965 viu publicada (por insistência de um jovem e entusiasmado estudante) A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média, uma alentada tese escrita em 1940 e defendida em 1951 que, após intermináveis discussões da banca examinadora, não foi suficiente para lhe dar o título de doutor. Entre esses dois "marcos", por assim dizer, publicou somente um ou outro artigo avulso.
Assim, nos anos 70, a imagem de Mikhail Bakhtin que começava ainda timidamente a se tornar pública, era a de um teórico da literatura com dois poderosos - mas isolados - trabalhos temáticos. Na obra sobre Dostoiévski, Bakhtin definia o romancista como o criador do "romance polifônico", o texto em que diversas vozes ideológicas contraditórias coexistem com o próprio narrador, em pé de igualdade; no trabalho sobre Rabelais, criava a categoria de "carnavalização" como um dos eixos da cultura popular, que inclui tanto a inversão hierárquica dos valores pelo poder demolidor do riso quanto o ponto de contato (e de guerra) das diversas linguagem sociais.

Duas obras que seriam suficientes para lhe garantirem um respeitável lugar na teoria literária moderna. Mas em pouco tempo outros "Bakhtins" começaram a surgir - e a complicar um perfil que já estaria mais ou menos delimitado por esses dois trabalhos teóricos. No início dos anos 70, levantou-se a hipótese de que muitas obras editadas sob o nome de outros autores teriam sido na verdade escritas por Bakhin. Entre elas, Marxismo e filosofia da linguagem, assinada por V. N. Voloshinov e publicada em 1929, e O método formal no estudo literário: uma introdução crítica à poética sociológica, assinada por P. N. Medvedev e publicada em 1928. Ao mesmo tempo, apareciam os textos inéditos de Bakhtin, longos ensaios sobre o discurso romanesco escritos nas décadas de 30 e 40; e ainda textos de filosofia e de estética escritos nos anos de juventude. Além deste conjunto de trabalhos mais ou menos circunscritos à filosofia da linguagem e à literatura, também se descobriram textos bakhtinianos abordando temas tão díspares como o artigo Vitalismo contemporâneo, sobre a fisiologia do cérebro, assinado por I. I. Kanaiev e publicado em 1926, e o volume Freudismo, assinado por Voloshinov e publicado em 1927, uma contestação dos pressupostos da teoria freudiana, a partir de uma teoria da linguagem.

Diante desta pletora de dados aparecidos quase que subitamente, é natural que se cometessem alguns equívocos de interpretação - pelo menos até que o seu conjunto de obra fosse assimilado, o que começa a acontecer só agora, quando o século se fecha. Bakhtin apareceu no Ocidente em pleno império das concepções imanentes da linguagem. Na área da Lingüística, o gerativismo de Noam Chomsky ocupava então todos os espaços; na teoria literária, o estruturalismo reinava praticamente sozinho, sustentando o conceito metafísico de que cada obra literária é a realização possível de uma estrutura abstrata muito mais geral; nas palavras de Tzvetan Todorov, no best-seller acadêmico da época, Estruturalismo e poética, cada texto "não será senão um exemplo que permite descrever as propriedades da literatura". Na mesma obra, Bakhtin é descartado (até então apenas o autor do livro sobre Dostoiévski) em dois ou três paragrafos ligeiros.
É neste panorama que aparece a biografia Mikhail Bakhtin, de Katerina Clark e Michael Holquist, publicada originalmente em 1984 pela editora da Universidade de Harvard, e agora finalmente lançada no Brasil em uma cuidadosa edição da Editora Perspectiva, com prefácio de Boris Schnaiderman e tradução de J. Guinsburg. Desde já, ressaltem-se duas boas qualidades desta obra. Uma delas é o fato de que, pela primeira vez, através de um cuidadoso e detalhado levantamento de dados biográficos, chegou-se a uma visão muito mais completa de sua vida. Para usar um termo caro ao próprio Bakhtin, tem-se agora um ponto de vista "exotópico", um olhar abrangente de fora capaz de dar sentido, interpretação e acabamento ao que antes parecia um colcha de retalhos mal-costurada. Trata-se de um ponto de partida sólido para compreender quem foi e o que pensou Mikhail Bakhtin. Qualquer estudo de envergadura sobre sua vida terá obrigatoriamente de levar em consideração esta obra pioneira.
A segunda grande qualidade do livro é afinal ter revelado, na sua consistência biográfica e bibliográfica, não uma curiosidade histórica a ser resgatada do esquecimento, mas um pensador complexo e articulado que, transitando da filosofia da linguagem às questões da estética, construiu uma respeitável catedral teórica. A obra de Clark & Holquist revela com clareza que há um ponto em comum vinculando organicamente os tópicos discutidos desde os seus textos filosóficos de juventude até os de seus últimos anos - e incluindo-se aí as obras não assinadas por ele. De tal arte, que a questão da "autoria" deixa de ser relevante, na medida em que as concepções da linguagem que definem a filosofia de Bakhtin subjazem nos textos disputados, afinal todos produzidos sob a efervescência crítica do que se chamou "círculo de Bakhtin". Embora o enigma da autoria persista - Bakhtin nunca reconheceu oficialmente ter escrito os livros disputados, ainda que haja evidências muito fortes nesse sentido - não resta dúvida de que a concepção de linguagem presente em Marxismo e filosofia da linguagem e em O método formal no estudo literário é rigorosamente "bakhtiniana", assim como o pressuposto teórico que contesta Freud em Freudismo é também puro Bakhtin.

Assim, o ponto forte do livro de Clark & Holquist residirá exatamente no que ele tem de informação bio-bibliográfica e em que medida essas informações nos revelam a estatura intelectual de Bakhtin. Uma trajetória fascinante: acompanhamos desde a juventude de Bakhtin em Vilno, na Lituânia, passamos pelo ambiente cultural de sua formação, a presença do irmão Nikolai, também lingüista (depois exilado na Inglaterra), a universidade em São Petersburgo, a Revolução e a efervescência cultural que se seguiu, e a formação do que ficou conhecido como o "Círculo de Bakhtin". Mais tarde, a partir de 1929, acompanhamos o exílio de Bakhtin no Cazaquistão, o desaparecimento de quase todos seus amigos nos anos do expurgo stalinista, e pouco a pouco, já nos meados dos anos 50, a reaproximação com os centros maiores, a lenta redescoberta de seus trabalhos e a morte em Moscou. Esse o roteiro que os autores costuram, contextualizando cada momento de sua obra, quase sempre produzida em condições muito difíceis.
Mas entrar no seu mundo - mesmo com os dados biográficos na mão - não é tão fácil. "O difícil em Bakhtin", como apontam os próprios Clark & Holquist, "é a exigência que seu modo de pensar faz ao nosso, a exigência de mudar as categorias básicas que a maioria de nós utiliza para organizar o próprio pensamento". A dificuldade já começa, por exemplo, no conceito mesmo de signo, retomado por Bakhtin sob outra perspectiva em Marxismo e filosofia da linguagem, quando submete a visão saussureana a uma crítica dura. Ao dizer que todo processo de significação inclui, desde o seu nascimento primeiro, o ponto de vista do outro - isto é, que toda palavra é inelutavelmente dupla, e que a consciência individual só pode se definir como tal quando inclui em si mesma o ponto de vista de fora, e portanto vivemos permanentemente num território dialógico (para usar uma palavra-chave do pensamento bakhtiniano), Bakhtin vira de cabeça para baixo as noções congeladas de "emissor" e "receptor" funcionando como entidades avulsas que trocam informações neutras.

Entender a noção de dialogismo em Bakhtin é o pressuposto para a compreensão de toda a sua obra. O seu dialogismo exige uma concepção descentralizada de mundo, a partir da própria natureza da linguagem - e não simplesmente como um imperativo ético. Em outras palavras, não se pode esquecer que Bakhtin é, antes de tudo, em todos os seus textos, um cientista, e não um moralista - ainda que, é claro, e isso também é Bakhtin, nenhuma palavra (nem a da ciência) seja desprovida de valor ético. Parece estar exatamente aqui, no eixo da interpretação do pensamento bakhtiniano, o ponto fraco da obra de Clark & Holquist. O aspecto mais visível dessa fraqueza - em certos momentos, gritante - é a tentativa de a todo custo fazer de Bakhtin um teólogo, ou um pensador religioso.

Apoiados em algumas poucas evidências, entre elas a participação de Bakhtin em círculos religiosos que, na efervescência pré e pós-revolucionária, eram fóruns de acaloradas discussões filosóficas, Clark & Holquist sublinham repetidamente o "cristianismo" de Bakhtin, embora não se encontre rigorosamente nada nos seus textos que permita, com um mínimo de honestidade intelectual, classificá-lo como um "pensador religioso". Nesse esforço bizarro de interpretação, até mesmo as transformações de significado que se processam na interação entre falante e ouvinte, que Bakhtin analisa em Marxismo e filosofia da linguagem, revelam-se para os autores "uma história de um Deus que morre e vive", com claras "sugestões cristológicas".

Ao mesmo tempo em que assinalam corretamente o fato de que em Bakhtin "o mundo em essência não tem significado" e que "as pessoas nada são em essência senão criadores e consumidores de significado", os autores, como se isso não fosse um paradoxo, acrescentam que "em última análise, o pensamento de Bakhtin é uma filosofia da criação, uma meditação sobre os mistérios inerentes à ação de Deus...". Por fim, Clark & Holquist defensivamente acabam por estender a teologia a qualquer atividade intelectual sobre a linguagem: "Pensar acerca da linguagem, mesmo sem invocar termos da teologia, deve envolver, na natureza da linguagem, algumas das questões centrais com as quais os pensadores religiosos sempre se debateram, tais como a natureza do significado (...)".

A interpretação chega ao absurdo no capítulo "Rabelais e seu mundo", em que a categoria do grotesco, uma tecla-chave da tese de Bakhtin sobre a cultura medieval e a obra de Rabelais, merece o seguinte comentário: "Assim como o carnaval representa a intertextualidade de ideologias, oficiais e não-oficiais, do mesmo modo o corpo grotesco projeta em primeiro plano a intertextualidade da natureza. O grotesco é percebido intertextualmente no plano da biologia. O cuidado de Bakhtin com aspectos exuberantemente físicos do corpo remonta ao seu interesse no corpus Christi, o corpo efetivo do homem vivo Jesus, e à sua preocupação com a ciência da fisiologia." Dificilmente se verá num ensaio crítico de envergadura um chifre tão estranho na cabeça de um cavalo. Como que se desculpando, os próprios autores confessam que "é difícil, no Ocidente, enxergar em Bakhtin os vínculos entre a sua cristologia e as preocupações principais, aparentemente não-religiosas, de seu pensamento". De fato, é muito difícil.

De ilação em ilação, os autores afinal decidem: "A teologia de Bakhtin também se baseia numa tradição cristã que honra o presente, o humano, a riqueza e a complexidade da vida cotidiana". Mas que teologia? Aqui transparece não só uma distorção interpretativa fundamental sobre o que escreveu Bakhtin, mas também um não reconhecimento da natureza de seus textos. Equivale a dizer que ele chegou a conclusões tais e tais não por uma teoria de fundamentação científica, mas por imperativos morais e éticos - "honra". Isto é, o dialogismo não seria uma categoria que procura definir objetivamente a natureza da linguagem, mas uma meta moral que todos devemos atingir - uma confusão que está presente em muitos momentos do livro.

O que é uma pena: esse aspecto chama a atenção do leitor justamente pelo seu vivo contraste com as recensões críticas das obras de Bakhtin que o livro contém, tecnicamente bastante claras e precisas - chega-se a pensar em "encaixes interpretativos", semelhantes ao que o próprio Bakhtin muitas vezes teve de fazer, intercalando chavões do marxismo-leninismo para aprovação da censura. Agora a censura vem de outro lado: os autores não reservam um único parágrafo, por exemplo, para discutir que relevância teve o diálogo com o marxismo no pensamento de Bakhtin, um tópico muito mais pertinente que a sua suposta teologia.
Mas o fato é que essa linha interpretativa dos autores - que parece não ter encontrado eco em nenhum outro estudioso de Bakhtin até aqui - não chega a comprometer a qualidade básica da obra, o seu mapeamento bio-bibliográfico, um notável ponto de partida em direção à compreensão mais completa de um pensador ainda por se desvendar em toda a sua riqueza.


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