Uma surpresa desconcertante
Folha de S. Paulo, 7/9/1997
Objetos turbulentos, de José J. Veiga

Cristovão Tezza

Ao ouvir o nome do escritor José J. Veiga, grande número de leitores se lembrará imediatamente de pelo menos um livro, A hora dos ruminantes, uma bela e marcante fábula sobre uma pequena cidade invadida por animais, que passou a ser uma espécie de referência e síntese de sua obra. O lançamento de Objetos turbulentos - Contos para ler à luz do dia nos dá agora a oportunidade de rever o seu trabalho e relembrar o seu universo literário, que já tem delimitado um merecido espaço na história da nossa literatura mais recente.

Objetos turbulentos contém onze histórias curtas - talvez a palavra exata seja mais "histórias" que "contos" - que versam em torno de objetos; ou de pessoas que, num momento, vivem em torno de um objeto; ou, mais exatamente ainda, sob o império eventual de um objeto. Um espelho encontrado no lixo que desestrutura a vida de um casal; uma cadeira herdada que precisa ser passada adiante; uma luneta que vigia vizinhos na mão de um adolescente; um insuportável tapete florido; a palavra "cantilever"; um caderno de endereços, um cachimbo, uma pasta de couro...

Em todos esses e outros casos, as personagens como que se dirigem deliberadamente em direção a um objeto de desejo, objeto que acabará por ameaçá-los e até mesmo por destruí-los. O leitor levará algum tempo para compreender qual será o sentido do texto lido. Diremos: "Mas isso não faz sentido!" E não faz sentido de uma forma radical: os contos parece que não têm lógica interna, aquela organização de causas e efeitos em seqüência que em princípio deve estar presente mesmo na história mais fantástica ou absurda. Ou, pelo menos, como exige uma boa fábula, uma clara lição de moral. Em Objetos turbulentos nada disso é visível: o leitor terminará cada um dos textos com a sensação de quem foi levado com tapinhas nas costas para um beco sem saída, ou a quem foi dada só a primeira parte de uma história, faltando-lhe a última chave.
Uma boa pista para resolver o mistério talvez esteja na epígrafe no livro, que faz referência a "velhos papéis, a incômoda presença do inacabado". Uma sensação de inacabado que potencializa a sua enigmática força pelo fato de se encontrar justamente num universo perfeitamente "acabado". Em todos os textos, o mundo narrado inicial é um mundo tranqüilamente conservador, pacífico, idílico mesmo. Não há tensão entre as pessoas; todas se movem num terreno confraternizante, de bom humor, de aceitação mútua, de tolerância, e a família é sempre um valor positivo (Ramos logo se inseriu na família, sentia-se já como um deles, e como um deles era tratado. Disse isso em carta aos pais. Que ficaram felicíssimos, claro). Há em todos eles um ar de cidade pequena (e antiga), o sopro de um mundo primeiro e natural, a nossa clássica utopia de um universo não contaminado pelos horrores modernos. Esse ar permanece mesmo na grande cidade, como em "Vestido de fustão", quando o instalador de cortinas volta mais duas vezes ao apartamento da viúva, que lhe oferece cappuccino, para saber se ela está satisfeita, ou quando as pensões, como extensão da família, aparecem mais que os hotéis, com a sua frieza moderna.

A linguagem que realiza esse mundo tem a simplicidade do "contador de casos", um narrador que avança pelo prazer mesmo do que conta, preparando o terreno para uma supresa que aparecerá no último momento - mas quase sempre uma surpresa absolutamente desconcertante, enigmática, não raro inexplicável, às vezes beirando o terror, como em "O cinzeiro", às vezes a pungência lírica, como em "Luneta". Até chegar a essa turbulência, entretanto, o narrador é íntimo do mundo que narra (Como não tinham segredos um para o outro, ela admitiu que...), às vezes como quem reconta uma história que ouviu (trabalhava na Bolsa, parece que de operador de pregão), às vezes comentando (por sorte dos moradores e visitantes, o prédio, antigo, só tinha seis andares), aconselhando (a felicidade é um trono de nuvem, quem se senta nele deve estar prevenido porque se desmancha à-toa, basta um ventinho, uma palavra impensada), às vezes fazendo uma graça ingênua (Quando a minha Ignácia-com-gê acabar de lavar a cozinha eu mesma vou providenciar um café para nós dois. Ou o senhor é café-abstêmio?), enfim, um narrador que assimila perfeitamente o universo sedimentado da "sabedoria popular", um narrador que se transforma, ele mesmo, em uma de suas vozes. É uma linguagem que em geral evita chamar a atenção sobre si mesma; ao mesmo tempo em que se entrega em vários momentos ao "típico", ao sabor do aforismo e da frase-feita, recusa a caricatura do estereótipo.
É nessa simplicidade já sedimentada pelo tempo que está de fato a sua força; nos raros momentos em que a gíria e a tensão contemporâneas tentam aparecer (Hum. Não falei? Coisa lorde, broder), como em "Cachimbo", a invasão desajeita o texto, no mau sentido; não por coincidência, esta é a única história em que existe um confronto real entre pessoas, o que não parece ser o território literário de José J. Veiga. Exceto por um ou outro instante episódico, em Objetos turbulentos há uma situação essencial que atravessa todas as narrativas, e que de algum modo lembra a metáfora de A hora dos ruminantes: as pessoas são substancialmente boas, e no livro esse é um ponto de partida universal. A ameaça, o medo, o horror e o desastre vêm todos de fora; são entidades ameaçadoras, terríveis, que se desencadeiam não propriamente pelo desejo dos homens, mas por algo que não se compreende, e que pode assumir a forma de uma pasta, de um cinzeiro, de uma palavra. Exatamente sobre isso que se sustentam as narrativas do livro, com a plena consciência do narrador: Nem tudo que acontece com uma pessoa tem explicação lógica; e quando não tem, em vez de se ficar quebrando a cabeça para entender o porquê, o melhor expediente é dizer que estava nas estrelas, e ponto final.
Um ponto final que o resenhista deixará para o leitor, como queria José J. Veiga...



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