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A narrativa envergonhada
Revista Cult - agosto de 1997
Contos
e novelas reunidos, de Sérgio Sant'Anna
Cristovão Tezza
A edição de Contos e novelas reunidos e do
romance Um crime delicado, do escritor carioca Sérgio
Sant'Anna, é uma ótima oportunidade para acompanhar
não só boa parte da trajetória desse autor,
como também para avaliar uma vertente específica
da literatura urbana brasileira dos últimos trinta anos,
de que Sant'Anna é um dos mais importantes realizadores.
Dois traços são distintivos, nessa rápida
classificação: o primeiro é a ausência
do sotaque regional ou social; a linguagem de Sérgio Sant'Anna
é predominantemente "neutra", mesmo quando trata
de segmentos sociais específicos; ela é urbana no
que o mundo urbano tem de abstrato, mental, não enraizado
no mundo das relações familiares ou típicas.
O outro traço é o fato de sua linguagem, em boa
parte de sua obra, se realizar em narrativas desconfiadas que
só a contragosto se entregam à ilusão romanesca
clássica.
Em O sobrevivente, de 1969, seu livro de estréia,
já temos um escritor completo - contos como "O albergue"
e "Um par de dados", por exemplo, revelam plenamente
que ali bate o coração da boa literatura. Ao mesmo
tempo, o livro apresenta algumas das armas que serão a
marca registrada do autor. O leitor muito apressado, por exemplo,
desde esse primeiro momento ficará com o pescoço
marcado pelos puxões da coleira sintática da frase
de Sant'Anna, até que afinal se deixe domesticar por uma
sentença que sempre pede calma, e que, para esgotar o seu
território reflexivo, vai se desdobrando numa circularidade
tranqüila e distante. Os contos se constroem por composições
cumulativas de massas verbais, quase solenes, e, por isso, se
realizam numa linguagem que recusa o coloquial e a oralidade.
Uma frase que, na dúvida, preferirá sempre o mais-que-perfeito
e os pronomes átonos; e a presença inevitável
dos temas sociais (estamos em 1969, já com a ditadura militar
instalada) não se deixa contaminar pelo "típico".
Desde aqui, já temos um narrador que não se entrega
ao seu personagem, controlando-o com frieza. Veja-se esse trecho,
de Exercício:
A violência, entretanto, possuía sempre como virtude
o rompimento com uma fase e obrigava uma pessoa a tentar compreender
e isso acontecera também com ele, ali diante do velho,
um envergonhado do outro. Então era como se visse a si
e aos outros pela primeira vez e o tempo anterior desfilava diante
de sua percepção com uma certa e incorrompida nitidez;
ele entendendo, desse modo, o que era possuir para os outros um
corpo e uma presença e ser, enfim, uma pessoa, mesmo neutra
e apagada, diante deles, implicando aquilo tudo um modo diferente
de agir - a não ser que se dedicasse, a partir daí,
à rebelião.
No momento seguinte, em 1973 - Notas de Manfredo Rangel, repórter
(a respeito de Kramer) -, no final da ditadura Médici
(naturalmente, essa pontuação histórica que
fazemos é apenas indicativa), Sérgio Sant'Anna marcará
a passagem da sólida convenção narrativa
de seu primeiro livro para uma literatura que à falta de
melhor termo se chamou de "experimental", o que, a ser
verdade, obrigaria o autor a avisar o consumidor de que se trata
de rascunhos, a merecer desconto no preço, e não
de textos completos que se oferecem ao mundo. Mas, ao contrário,
não há nada de provisório neste livro; aqui
ele abre generosamente o leque de seus temas, acentuando o que
já estava latente no primeiro livro: a linguagem predominantemente
reflexiva, que se desenvolve agora no sentido de investigar a
própria arquitetura narrativa.
O resultado é um narrador que, se de um lado acentua ainda
mais a sua distância, de outro se realiza em textos de perfeito
acabamento, como "Composição II", ou o
conto que dá título ao livro, que recria o universo
das linguagens políticas (em particular o imaginário
caudilhesco da nossa América), em que o delírio
fragmentário dos lugares-comuns se articula numa representação
literária de concentrada unidade. É ainda a distância
do narrador que o deixa perfeitamente à vontade para trabalhar
temas tão díspares como as reflexões de um
prisioneiro ("O 58"), uma visita ao museu ("Uma
visita, domingo à tarde, ao museu"), o sofrimento
de um goleiro ("No último minuto", talvez a primeira
vez em que o vídeo-tape aparece como elemento central numa
peça literária brasileira) ou o pelotão de
fuzilamento, no esquemático e funcional "O pelotão"
- em qualquer caso, o narrador, transitando por todos os muitos
recursos de linguagem que domina, não perde nunca de vista
nem a dimensão ficcional, nem a velhíssima e sempre
viva noção de unidade da obra de arte.
Mas, no momento seguinte, O concerto de João Gilberto
no Rio de Janeiro, de 1982, como que respondendo a uma generalizada
falta de rumos do país inteiro (estávamos com Figueiredo
e seus cavalos), Sérgio Sant'Anna, na esteira aliás
das reflexões estruturalistas que contaminaram o pensamento
lingüístico e literário ao longo dos anos 70,
parece confundir crise da linguagem com crise da narrativa. E,
agora sim, podemos falar em "experimentalismo", no que
essa palavra tem de descartável: ao perder o senso de unidade
e ao trazer para os textos a linguagem crua do ensaio não
transpassada pelo ponto de vista de alguém que não
é o autor, o texto se dilui em coisa nenhuma - como ensaio,
não fica em pé, vítima da frase-feita; como
ficção, não toma corpo.
E emerge daí uma espécie de "narrativa envergonhada"
- isto é, a cada instante subversivo em que o impulso narrativo
começa a crescer com alguma força e empatia (como
nas primeiras páginas do "Projeto para a construção
de uma casa"), o narrador imediatamente destrói suas
coordenadas e não nos dá nada em troca; ficamos
com pedaços sintáticos na mão, e informações
dando conta, por exemplo, de que Schopenhauer (...) era apenas
um monte de ossos, vísceras e sangue e que enfeixou, sob
aquele nome, um conjunto de idéias que procurava tornar
o universo mais palpável, inteligível. É
curioso que, ao se tentar a "revolução narrativa"
(que hoje vemos basicamente como um projeto datado dos anos 70),
chegou-se à mais banal das linguagens, sem que ficasse
nítida a fronteira da ironia (porque, sem narrativa, a
linguagem da prosa literária perde o seu relevo e sua relação
de força com as outras; ela quer ser só ela mesma,
a referência bruta que destrói o horizonte estético);
o banal resulta simplesmente banal, como o narrador, aqui rigorosamente
um anti-Sérgio Sant'Anna, entregando-se à "prosa
poética" de "O sexo não é uma coisa
tão natural", em que enumera um tanto horrorizado
tudo que é justamente "natural" ou "naturalista"
no sexo, das masturbações dos adolescentes aos suspiros
broxas dos moribundos. O próprio conto que dá título
ao livro revela-se, na leitura em conjunto, uma espécie
de crônica entre amigos, uma repetição diluída
da estrutura formalmente rigorosa de Notas de Manfredo Rangel,
repórter (a respeito de Kramer), de nove anos antes.
Entretanto, como para lembrar ao leitor desavisado quem é
o autor do livro, em O concerto de João Gilberto
temos também "Na boca do túnel", um dos
mais bem-realizados textos do conjunto de sua obra, aqui sim a
síntese das qualidades de Sérgio Sant'Anna, dando
a um tema popular (o futebol, aliás ausente da literatura
brasileira, e que Sant'Anna domina de forma absoluta) o tratamento
sofisticado de um mestre da narrativa. Desta vez, sem vergonha
de narrar.
Nos momentos seguintes, a partir de A Senhorita Simpson
(1989, estamos em plena era Sarney), Sérgio Sant'Anna recupera
o controle de seus textos e as suas marcas maiores: o ângulo
torto, a perspectiva não convencional, sempre sustentando-se
pela unidade narrativa, e, na linguagem, por uma ironia sutil,
como em "Um discurso sobre o método" (as reflexões
de um tranqüilo lavador de janelas que, pelo olhar dos outros,
se transforma num suicida), "Breve história do espírito"
(sobre o exame escrito de um candidato a emprego numa igreja evangélica)
ou "O monstro" (entrevista de jornal com um professor
de filosofia que cometeu um crime hediondo). Nesse conjunto -
e aqui pensamos o livro inteiro, incluindo nele o recente romance
Um crime delicado -, a novela A senhorita Simpson, um saboroso
relato em torno de um grupo de alunos de um curso de inglês,
chama particularmente a atenção pela transparência
e suavidade do humor. Como a provar que o autor não tem
nenhum território proibido onde não possa exercer
seu talento, A senhorita Simpson transgride as próprias
"convenções" do autor: o diálogo
é ágil, mais "realista", sem as massas
verbais típicas da sua representação do mundo;
há uma nitidez, uma luminosidade que atravessa a narrativa
inteira; e, o mais significativo, no final da novela encontramos
um dos raros momentos em que o narrador, com simplicidade, endossa
o ponto de vista de seu personagem, entregando-se ao texto sem
atravessá-lo de ironia: Aos trinta anos, eu estaria deixando
para trás não a minha juventude, mas a minha velhice.
Se o leitor não conhece Sérgio Sant'Anna, A senhorita
Simpson pode ser um ótimo ponto de partida de um belo
e consistente trajeto literário.
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