Rubem Fonseca e sua prosa irresistível em dose dupla
O Estado de S. Paulo - 30/8/97
E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto e Histórias de amor, de Rubem Fonseca

Cristovão Tezza

Depois da morte de Machado de Assis, em 1908, que foi a um tempo o nosso grande escritor e o nosso grande escritor urbano, a prosa brasileira inaugurou um período de quase um século de temática "agropecuária", por assim dizer, um longo e freqüentemente brilhante interregno que se transformou na nossa marca registrada, naquilo que se reconhece no resto do mundo como "literatura brasileira". Como exemplos, bastará citar os nomes de Jorge Amado, Erico Verissimo e de João Guimarães Rosa - são algumas das referências mestras de uma arte que encontrou no mundo não-urbano a sua fonte e a sua linguagem, um período, aliás, que reflete a própria geografia de um Brasil até pouco tempo atrás predominantemente rural.

O primeiro nome a se consolidar entre nós talvez de forma completa com o perfil de "escritor urbano", no que essa definição tem de mais desenraizado (a ausência de um sotaque regional; a cidade como um espaço abstrato de relações não familiares e transformadoras, cosmopolita ou tendendo rapidamente ao cosmopolitismo; o universalismo como um valor desejável) foi Rubem Fonseca. A partir de seus contos dos anos 60, ele se consagra definitivamente ao longo de seus romances, uma consagração tanto como escritor popular, campeão de vendas, quanto como escritor sofisticado, respeitado pela crítica, uma combinação muito rara em nossa terra (ou somos populares, ou somos respeitados, e com freqüência não somos nem uma coisa, nem outra...).

Além disso, a obra de Rubem Fonseca tem sido também um centro de irradiação e influência literária - um bom número de escritores mais recentes terá aprendido pelo menos alguma coisa de seus temas, de seu universo ou mesmo simplesmente de sua sintaxe desconcertante, essa curiosa "ausência de literatura" que parece (só parece...) povoar o seu texto, como se depois de décadas de ornamento a fala cotidiana, em estado bruto, ganhasse estatuto literário. Uma influência que por si só nos autoriza, gostemos dele ou não, a considerá-lo um dos nossos escritores imprescindíveis; a sua obra estratifica parte substancial da imagem de um mundo urbano brasileiro e num certo sentido dá uma nova direção a uma parte da nossa literatura mais nova. Não podemos esquecer que a "influência" é uma das categorias básicas da história da literatura e da arte em geral, pois pelo parentesco entre os textos e as linguagens se consolida a representação literária de um tempo.

Assim, resenhar Rubem Fonseca a essa altura será sempre uma tarefa agradável. Sem o desafio de julgá-lo em primeira mão, podemos mergulhar livremente no seu texto, só para tentar descobrir o que faz dele, afinal, um prosador tão irresistível. A publicação simultânea da novela E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto e da coletânea de contos Histórias de amor, num pacote da Companhia das Letras, é uma boa oportunidade, porque apresenta de uma só vez as duas faces de sua literatura, a do romancista e a do contista.
Entretanto, um detetive literário mais desconfiado (e certamente sem humor), munido de uma lupa de grau mediano, que para começar abrisse a novela "E do meio do mundo prostituto..." poderia encontrar ali uma série de indícios não de um bom texto, mas de um desastre, a começar pelo nome do protagonista, Gustavo Flávio, que tanto pode ser uma referência a Flaubert quanto a um galã de radionovela - trata-se do sofisticado escritor do romance Bufo & Spallanzani, que agora reaparece recebendo fotos de suas ex-mulheres pelo correio, mulheres que acabam sendo mortas. Caberá a Mandrake, o herói de A grande arte, outro sucesso de Rubem Fonseca, deslindar o mistério. Sob esse roteiro frágil, a rigor desimportante, desenvolve-se o texto, uma seqüência de cartas e depoimentos gravados por Mandrake.

O nosso leitor-detetive, mal-humorado, aproximará a lupa: os personagens são chapados (Até me conhecer, Hilde era uma mulher virtuosa e fiel ao marido); alguns abismos do texto têm a profundidade de uma história em quadrinhos (Mas é preciso, repito, haver amor, sem amor o orgasmo causa sempre um imenso enfado misturado com tristeza); a filosofia é de almanaque (Aonde você quer chegar com essa filosofia de Almanaque, Raul?, perguntei); a linguagem trai o falso coloquial dos filmes dublados, pontilhada de mais-que-perfeitos sintéticos que rolam e brilham como pedras preciosas no chão do diálogo (Respondi que vira o retrato dela na revista e lera a notícia dizendo que ela fora assassinada - é curioso como resiste firme na literatura uma forma verbal que, na fala, só sobrevive em discurso de paraninfo); há longas digressões sobre o ato de escrever, rudimentos de uma "Prosaica" (E o candidato a escritor, acrescentou Gustavo, além de ler como um desesperado deve aprender a Ver, para poder fazer o seu leitor ver também, como Conrad anota no prefácio de The Nigger of the Narcissus), digressões que não têm nenhuma relação funcional com a narrativa, no velho e bom truque romanesco de o autor relativizar suas opiniões colocando-as na boca de personagens que não são nenhum exemplo de virtude; finalmente, a coroação do desastre, segundo o nosso detetive-leitor: toda a narrativa é intercalada por discursos edificantes sobre o charuto (de onde aliás vem o título do texto, extraído de um poema de Álvares de Azevedo), que são o supra-sumo do rococó dourado, o último adereço, a paródia da paródia: Sou contra esses sujeitos que cortam a ponta do charuto dando-lhes dentadas como cães danados. Às vezes uma única sentença parece conter tudo ao mesmo tempo: Esse churchill é para quando você se encontrar com uma amiga. Como você sabe, o nome é em homenagem ao Winston, que nunca se separou de um charuto com esse formato, nem mesmo em épocas de derramamento de sangue, suor e lágrimas.

No entanto, apesar desse suposto rosário de graças e fraquezas, E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto resulta paradoxalmente numa narrativa irresistível, livre, solta, saborosa - o espaço romanesco aberto, em que o autor maduro se diverte com o poder da linguagem, essa misteriosa capacidade que a palavra, quando dominada à perfeição, tem de fazer do leitor o que quiser, de arrastá-lo ribanceira abaixo ou acima, de levá-lo a recitar "quem ama as mulheres como nós não tira a vida delas" e prosseguir adiante como se nada tivesse acontecido; enfim, o leitor parece sentir em cada linha o mesmo prazer que o autor sentiu escrevendo seu texto. Nesse livro, a frase de Rubem Fonseca, como um bom charuto, "combure corretamente", contendo em si, no seu próprio e instantâneo consumo, o máximo prazer do texto.

Em seguida, o nosso leitor abrirá o segundo volume, Histórias de amor - e já nas primeiras duas páginas que encerram o conto "Betsy" parece que se abre também outra dimensão literária, não mais a do eventual maneirista que se diverte com o poder de sua técnica no terreno da paródia controlada, mas a do grande escritor movendo-se delicado, preciso, contundente, nos territórios amorosos da atividade humana que ele revela com uma força a um tempo luminosa e fria. Numa breve mas intensa seqüência de contos - Cidade de Deus, Família, O anjo da guarda, Viagem de núpcias, O amor de Jesus no coração, e mesmo a noveleta Carpe Diem, que se articula, longa, com a magreza funcional de um roteiro, quase a pura idéia de um conto - o leitor viajará pelas muitas e sempre inescrutáveis faces do amor levado pela mão de um escritor que, também ele, ainda se espanta com o universo que escreve e descreve, porque não o compreende totalmente, talvez uma das chaves da boa literatura. Nesses contos, a frase de Rubem Fonseca, a simplicidade de sua ordem direta freqüentemente curta e brutal - e mesmo assim pungente - revela de forma completa e absoluta por que, aos 70 anos, ele permanece como uma das nossas mais novas referências literárias.


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