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Livro de Moacyr Scliar perturba com leveza
O Estado de S. Paulo - 3 de maio de 1997
O amante da Madonna, de Moacyr Scliar
Cristovão Tezza
Da floresta de livros que povoam a vida, há sempre alguns
títulos que, de um modo ou outro, nos marcam profundamente,
e no silêncio da memória se conservam como um ponto
de referência para, afinal, tentar entender esse mundo e
nele sobreviver. O centauro no jardim, do escritor gaúcho
Moacyr Scliar, foi um desses livros para mim. A partir daquele
menino que nascia centauro num mundo "realista", Scliar
sedimentava, mais que simplesmente uma fábula, uma visão
de mundo particular, inconfundivelmente própria, do que
podemos chamar de "homem inadequado", uma das figuras
essenciais da literatura moderna.
Essa mesma visão de mundo acompanha toda a vasta produção
de Scliar, que transita do romance para o conto sempre com a leveza
e a clareza do mais autêntico contador de histórias,
um obsessivo contador de histórias, e um narrador curioso
que, também ele, parece não compreender exatamente
o que ele mesmo narra. Afinal, o mundo não tem mesmo sentido
- mas não se esperem, por causa disso, profundas digressões
filosóficas ou gritos desesperados de horror: no máximo,
pesadelos durante o sono, logo tranqüilizados por uma espécie
suave de fatalismo. No mundo de Scliar, as coisas são assim
mesmo: levemente perturbadoras, mas de uma leveza renitente, absurda,
plana, desconfortável, inapelavelmente fora do esquadro.
Uma amostra dessa marca do escritor pode ser encontrada em O amante
da Madonna (Editora Mercado Aberto, 63 pp.), uma pequena coletânea
de contos. Em histórias curtas, às vezes quase que
simplesmente anedóticas, Scliar revela uma simplicidade
transparente que, como gênero, flerta com a crônica
de jornal sem nunca se confundir completamente com ela. Coerente
à sua marca, trata-se de um texto que na própria
estrutura da sentença recusa o monumental, o complexo e
o difícil, mas que, justo por essa limpeza, pela sua frase
quase que desprovida de "estilo", nos desconcerta: o
leitor sentirá sempre o impulso de ler de novo, porque
algum resíduo de significado ficou ali atrás, algum
pequeno absurdo nos perseguirá como o toco do dedo decepado
que demite os funcionários da fábrica em O dedo.
Não há hierarquias no universo plano, jamais psicológico,
dos textos do livro - e essa falta (funcional) de perspectiva
fica evidente desde o "Agradecimento", na verdade uma
outra historieta que, abrindo como que inadvertidamente o livro,
já coloca o leitor no trilho original daquele mundo, o
que é também tirá-lo dos trilhos, porque
promete uma graça, ou uma espécie de humor (A limitada
Raquelita fez o que pôde para escrever pesquisa com s e
não com z, mas a idéia que teve de instalar um grande
sofá em minha sala de trabalho foi maravilhosa e nos proporcionou
horas inesquecíveis) que o resto do livro frustrará.
Do mesmo modo, no saboroso Bronze, a exata estrutura de uma anedota
(o escultor Rufino tinha dois problemas: falta de talento e falta
de bronze, mas só o primeiro era irremediável),
e que se fecha exatamente como uma crônica (como disse Mario
Quintana, um engano em bronze é um engano eterno), ganha
uma substância sutilmente perturbadora à medida que
Rufino não se encerra no papel apenas engraçado
que o primeiro parágrafo prometia.
A aparente falta de unidade - há desde pequenas cenas,
como A pequena vida dos pêlos ou Grande África, até
estruturas mais longas, como Antes da queda - se transforma no
próprio paradigma dos textos do livro, a sua fragmentação
de mosaico. Cada peça parece apresentar uma pergunta singela
ao leitor, quase um jogo, do crânio misterioso de O índio,
passando pelo contraponto de O casal no verão, até
a coragem escatológica de Amor, merda, amor - em qualquer
caso, o que parece apenas uma historieta descartável deixa
sempre um resíduo de desconforto, a assimetria desconcertante
das coisas (pequenas) do mundo. Scliar, seguindo a lição
de Borges, preferirá sempre a preparação
de uma expectativa à de um assombro.
Assim, a presença de uma espécie de enigma parece
ser a chave de cada pequena história. "Enigma",
exatamente no que ele terá de não resolvido, e não
como a chave para qualquer "sentido da vida" ou outra
grandiloqüência qualquer. Um exemplo desse avesso é
o "exercício de interpretação"
que, justo como uma brincadeira dispersiva e esvaziante de qualquer
pretensão outra, fecha o conto Teste, no qual uma vidente
diz a um homem que ele se encontrará com uma mulher no
motel - ele vai lá e encontra a própria vidente.
Em outro ótimo momento, No tribunal do povo, o marquês
de Savigny-Leclerc, assaltado pela culpa de sua vida de bon vivant,
num mundo de tanta miséria, contrata atores para que, periodicamente,
representem o tribunal do povo e simulem sua decapitação.
No conto que dá título ao livro, O amante da Madonna,
Scliar faz em três páginas (e três palavras
- sei e não acho - que se repetem e pontuam o diálogo)
um pungente retrato de mulher sobrevivendo no fatalismo das frustrações
cotidianas.
Para quem não conhece Scliar, esta pequena coletânea
será uma excelente introdução; para quem
o conhece, o prazer de revê-lo.
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