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AS 1001 NOITES DE DALTON TREVISAN
Violência seca colore vitral de Dalton Trevisan
O Globo, Prosa&Verso, 26/4/97
234, de Dalton Trevisan
Cristovão Tezza
Talvez o modo justo de começar uma resenha sobre um livro
de Dalton Trevisan - qualquer um - seja reconhecer, afinal, que
estamos diante de um grande mestre da literatura brasileira; mais
que isso, diante do último sobrevivente de uma estirpe
rara, a dos criadores de linguagem. E para dar o toque bíblico
que os mestres merecem, acompanharemos o elogio do mesmo lamento
que têm chorado os desgraçados personagens daltonianos
ao longo do mais consistente painel literário que o país
produziu nas últimas décadas.
Mas antes do entusiasmo ligeiro de quem, até que enfim,
encontra um santo sem mácula para rezar a admiração,
é preciso advertir: não é fácil gostar
de Dalton Trevisan. Muito mais fácil é detestá-lo.
Não pense que ele distrai na praia, nem que ele melhora
a passagem do tempo, página a página, língua
de fora esperando o que vai acontecer adiante. Talvez justo por
saber disso, nos últimos livros o mestre tem tomado o cuidado
de não passar das dez linhas por conto. Assim curto, não
há como fugir da trombeta do anjo vingador - ele nos alcança
antes mesmo do final da frase.
Parece que Dalton Trevisan passa os dias, meses e anos apalpando
a nossa cabeça com a mão esquerda, cuidadosamente,
detalhadamente, atrás do ponto mais fraco, mais frágil,
mais angustiante, para a mão direita ali desfechar o porrete.
De uma só vez. Assim, por exemplo: - Nunca me senti tão
só, querida, como na tua companhia. Encerra-se, numa linha,
o menor conto da história da literatura brasileira, um
entre muitos de seu último livro, que, radicalizando o
seu horror à retórica, chama-se simplesmente 234
(Editora Record, 1997, 127 pp.), o que é também,
pela seqüência singela dos números, uma forma
de se dizer interminável, como as 1001 noites de uma estranha
Sherazade. Como o texto diz, o conto não tem mais fim que
novo começo.
Em 234 Dalton compõe um vitral de 234 ministórias,
como define o subtítulo, que se alternam número
a número, ímpares destacadas em itálico,
e se revezam também em extensão - as histórias
mais curtas não passando de três ou quatro linhas,
e as mais longas variando entre dez e quinze. A imagem do vitral
talvez seja exata até mesmo como representação
gráfica do conjunto, os contos de uma ou duas linhas contornando
os volumes "maiores"; mas igualmente parece adequada
pela própria visão de mundo daltoniana, cujas partes,
ou cacos, potencializam sua significação no conjunto
em que se inserem. Também do vitral podemos lembrar o parentesco
temático e narrativo entre as partes, um meio conto que
começa aqui e termina dois momentos adiante, entrelaçando-se
uns nos outros, alimentando-se todos na mesma (terrível)
semelhança.
Nesse sentido, não cabe mais falar em "conto",
na concepção clássica do gênero; desde
Ah, é?, realizando o que de certa forma já estava
implícito no universo dos joões e marias que, clones,
se repetiam conto a conto em boa parte de sua obra, Dalton pinta
painéis, conjuntos bem amarrados de textos curtos que tanto
mais força terão quanto mais sejam percebidos em
conjunto.
E não há como escapar, gostemos ou não: a
obra de Dalton Trevisan representa o trabalho absolutamente solitário
de um mestre, na estatura de uma vida inteira. Nenhum outro escritor
brasileiro, hoje, terá o impacto, o poder de síntese,
a violência, a absoluta, seca, irredimível brutalidade
da frase de Dalton Trevisan. Mas atenção: não
se trata apenas do domínio técnico, do bom artesão
burilando sentenças, o parnasiano da desgraça -
não são elas, as frases enxutas, que nos tocam,
mas o universo sufocante detonado por elas na cabeça do
leitor, palavra e visão de mundo inextricáveis no
seu texto.
E para os que sintam a tentação infeliz de alinhavá-lo,
ligeiros, a modismos formais e orientais, Dalton Trevisan, que
odeia parentescos, levanta seu porrete de bicho: Haicai - a ejaculação
precoce de uma corruíra nanica. Também é
melhor evitar a retórica da "condição
humana", das contingências do sofrimento, de qualquer
atenuante à condenação de estar vivo: A santidade
do pai é alcançada pela danação dos
filhos. Em suma: O melhor conto você escreve com tua mão
torta, teu olho vesgo, teu coração danado. Prepare-se
o bom leitor: em Dalton Trevisan, não sobra nada. Como
um profeta do Velho Testamento (cuja linguagem é freqüentemente
sua irmã), Dalton não estenderá a mão
para ninguém - a fúria moral do escritor é
irremediavelmente intransitiva.
Assim, a imagem do vitral é a sua memória religiosa,
o atavismo do templo. Há em Dalton Trevisan tanto a onipresente
sombra da culpa (a mais ínfima miséria sempre esmagada
pela ira do Profeta) quanto as paródias da linguagem bíblica,
do Preto Véio ao príncipe Lúcifer.
Escrever é julgar além do último véu:
Escolhe as palavras no cuidado de quem, ao morder, sente um espinho
na doçura do peixe, ensina o narrador.
É ainda a concepção do vitral que permite
ampliar o seu leque de referências (não o temático,
que será sempre o mesmo, pela eternidade). Dalton mergulha
tanto no naturalismo mais retalhado, transformando-se numa espécie
de "Zola cubista", em que seres farejantes a animalescos
se movem ao acaso de instintos (Ela entrega o relógio,
as jóias, o cartão. Dinheiro, só um nadinha.
Azar de ser bonita. Na hora bem doido. Que tire a roupa. Mato
a guria se você não. Ela aceita e vem pro banco de
trás. Ou: Orra vida, não tenho mais aonde ir. Que
neguinha me quer? Então fico na rua e tal. E fico zoando.
Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo?), até o lirismo,
sempre paródico, que só consegue se realizar na
ausência do homem (Agulhas brancas ligeirinhas costuram
o ar. Chove. - mas que o leitor não se iluda, que dois
textos adiante se explica: A chuva engorda o barro e dá
de beber aos mortos). E sobrará sempre, no seu painel,
espaço para bater na Curitiba emblemática tanto
da propaganda oficial (Curitiba é uma boa cidade se você
for o palavrão berrado em todas as bocas), quanto na solidão
eterna da aldeia que se canta (Em cada esquina de Curitiba um
Raskolnikov te saúda, a mão na machadinha sob o
paletó).
Mas há ainda, o leitor terá percebido, outra dimensão
daltoniana a ser lembrada: ele tem essa dádiva que Samuel
Beckett, para lembrar alguém próximo, jamais teve
- o poder demolidor da gargalhada. Em toda sentença de
Dalton, atrás da miudeza dilacerante da voz que fala e
desespera ( - Chegue, meu velho. Desculpe a boquinha torta. Dente
só uso fora de casa), há sempre um narrador que
ri, há um poder de sátira que nos contamina, que
nos torna inescapáveis cúmplices da visão
de mundo daltoniana, porque diante da sua frase não podemos,
mesmo compartilhando o horror que revela, esquecer a graça
corrosiva que conta. O riso subterrâneo é a vacina
daltoniana contra qualquer sombra de afeto, contra o fantasma
da compaixão e da solidariedade, inelutavelmente, brutalmente
falsas, das quais ele fugirá para todo o sempre como o
vampiro foge da cruz.
Como se advertiu acima, não é fácil gostar
de Dalton Trevisan.
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