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A volúpia da blasfêmia
Folha de S. Paulo - 17/9/1995
A torre ferida por um raio, de Fernando Arrabal
Cristovão Tezza
Em seu filme Irei como um cavalo louco, Fernando Arrabal nos
mostra uma cabeça emergindo de um vasto deserto subitamente
esmagada pela pata de um cavalo em disparada; em Viva a morte!,
uma criança brinca com pequenas marionetes que se enforcam
num palco minúsculo. Tanto nesses filmes dos anos 70, hoje
uma sucessão desvairada de imagens que restaram na minha
memória, como no teatro ou nos romances - em tudo que toca,
Arrabal faz explodir a representação das violências
com tal força que, perto dele, Samuel Beckett parece mais
um monge assaltado por pudores metafísicos e os rinocerontes
de Ionesco são até discretos, para citar dois autores
ao lado dos quais costuma-se colocar Arrabal, dentro da definição
escolar do chamado teatro do absurdo.
O romance A torre ferida por um raio, publicado originalmente
em 1983 e traduzido agora no Brasil, retoma as obsessões
personalíssimas de Arrabal, esse espanhol nascido em 1932,
filho de pai republicano, desaparecido na guerra civil, e mãe
franquista que, segundo algumas suspeitas, teria denunciado o
próprio marido à polícia. Verdade ou não,
só a hipótese já terá sido suficiente
para contribuir tanto para as teses dos psicanalistas quanto para
a sua explosiva visão-de-mundo... No livro, Arrabal acrescenta
mais uma paixão ao delírio dos seus personagens:
o jogo de xadrez.
O xadrez, aliás, funciona no romance com um eixo organizador
da trama, como se Arrabal confiasse à ordem desse jogo
conservador a arquitetura rígida que lhe permitisse soltar
seus demônios sem que a narrativa perdesse o rumo. Logo
na primeira página estamos em Paris, diante da partida
decisiva, a 24ª, do Campeonato Mundial de Xadrez, entre Elias
Tarsis, um inquieto andorrano de pais espanhóis, e Marc
Amary, o gélido suíço - ambos se odeiam,
é claro. O narrador nos conta também que um certo
ministro soviético das Relações Exteriores
(naquela época existia um reino chamado União Soviética)
havia sido seqüestrado em solo francês.
Até aqui estamos diante de um prometedor roteiro de um
bom best-seller de espionagem, incluindo o chavão de filme
dublado do primeiro parágrafo: 'Elias Tarsis não
ergue o olhar (...). Se o fizesse, não poderia reprimir
o impulso de atirar em sua cara empedrada o tabuleiro e as peças
de xadrez.' Mas rapidamente o narrador vai desconcertando a narrativa
por uma sucessão fantástica de imagens e informações,
perpassada sempre pelo poder corrosivo da paródia.
As biografias que Arrabal nos apresenta, de um e outro jogador,
enquanto a partida de xadrez avança, são o terreno
em que a linguagem libera seu alegre poder demolidor. Tarsis,
na melhor tradição picaresca, foi um órfão
criado pela tia, em Madri; ganhou um concurso de superdotados;
fugiu para Barcelona e virou um ourives; foi cafetão de
sua própria namorada, por quem torturava-se de ciúmes;
converteu-se aos jesuítas; preso ao fugir da Espanha, é
resgatado por duas mulheres, que se tornam suas amantes... e o
leitor não cansará de sua vida venturosa, por quem
o narrador dispensa um especial carinho.
Já Marc Amary é um perigoso paranóico, um
físico genial a caminho do Nobel que, ainda criança,
matou a própria mãe e não vê limites
para a realização de seus desígnios pavorosos,
todos submetidos ao rigor da lógica terrorista mais implacável,
consubstanciada no marxismo de almanaque dos adoradores da Albânia
e do falecido Enver Hoxha... Mas não é simplesmente
um tipo: o que o salva da mera caricatura (além do fato
de o livro não dar a mais remota importância ao universo
"verossímil", exceto no respeito às regras
do jogo de xadrez), são as vozes que povoam o seu mundo
esquizofrênico: 'Mickey', 'o menino', 'o mestre', 'Dona
Rosita'... com quem um atormentado e infantilizado Marc conversa,
discute, briga, às vezes foge trancando-se no banheiro,
e chega a viver o terror de vê-los povoando, gnomos escarmentos,
ridentes, os quadrados do tabuleiro de sua partida decisiva...
Arrabal sente uma atração irresistível pelo
impacto do que é espetacular: o contraste, o paradoxo,
o exagero e as oposições violentas povoam praticamente
cada linha do livro; tudo se desestabiliza sob a sua linguagem,
os limites são provocados até a ruptura, o humor
funde o sagrado, o profano e o escatológico numa visão
de mundo que é uma espécie de sátira perpétua.
O livro poderia ser apenas repetitivo, óbvio, ou mesmo
simplesmente velho, não fosse o fato de que está
viva no seu texto a alegria adolescente de um criador que, em
tudo que faz, domina essa rara e difícil arte (especialmente
ibérica, talvez) que podemos chamar de 'volúpia
da blasfêmia'... Para o leitor, também é irresistível.
Sobre a partida
A paixão de Arrabal pelo xadrez - um jogo absolutamente
lógico, em que os computadores nos massacram sem piedade
- é mais um de seus paradoxos. Mas para ler o romance de
Arrabal, não há nenhuma necessidade de o leitor
conhecer o jogo, que tem uma função apenas de âncora
na trama, fazendo contraponto à vida dos dois jogadores.
No entanto, se o leitor sabe pelo menos mover as peças,
será uma curtição a mais acompanhar a partida
pelas ilustrações reproduzidas no livro. A abertura
é um 'gambito da dama recusado', com troca dos peões
centrais no oitavo lance, o que garante um jogo aberto e agressivo,
com uma situação clássica: as brancas abandonam
os peões da ala da dama em troca de um ataque arriscadamente
violento ao rei negro.
Arrabal criou uma seqüência que, pela sua simplicidade
luminosa, está sob medida para a alegria dos amadores:
até mesmo eu, que sou péssimo enxadrista, vivi a
ilusão de entender a combinação dos mestres
e pude compartilhar a alegria do campeão ao sentir que
a partida estava ganha... Bem, um enxadrista um pouco mais chato
(o que não é raro, pela natureza longa e silenciosa
do esporte) criticará em Arrabal os dois ou três
lances absurdamente fracos que levam um dos jogadores à
derrota - mesmo considerando a tensão brutal que envolve
a partida, submetida à trama rocambolesca da história,
é pouco provável que um grande mestre numa partida
decisiva de um Campeonato Mundial cometesse tais erros, ainda
que, por exemplo, alguém estivesse sendo enforcado na sua
frente...
Se alguém duvida, deve ler A defesa, de Vladimir
Nabokov, este sim um livro sobre a alma do xadrez - é um
texto de uma perfeição e de uma crueldade irritantes.
Nabokov, que amava o xadrez mas separava as coisas, traça
lance a lance um retrato esmagador da derrocada mental de um grande
enxadrista. Nada que, de fato, interesse a Arrabal, que vive no
mundo catártico e transformador dos conteúdos, da
culpa e da remissão, do pecado e do milagre, da transgressão,
do jogo, da brincadeira e da fusão libertadora de todas
as coisas - por isso, mais do que apenas irônica, A torre
ferida por um raio é uma narrativa paradoxalmente alegre.
(CT)
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