Paródia transgressora celebra o sexo e outros prazeres
Folha de S. Paulo, Ilustrada, 25/02/2006

Catecismo de Devoções, Intimidades & Pornografias ,
de Xico Sá

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Onde há fé, há blasfêmia", dizia meu professor de latim, especialista em cantigas de escárnio e de maldizer da Idade Média portuguesa. E onde há blasfêmia - que é estritamente ofender a religião por palavras - haverá sempre uma inquisição por perto, como sentiram Bocage, o clássico dos clássicos da boca suja lusitana, e hoje Salman Rushdie, já num modelo inquisitorial de rito sumário, que chega a dar saudade da logística católica.

Isso vem à memória quando abrimos o curioso "Catecismo de Devoções, Intimidades & Pornografias", do colunista da Folha Xico Sá, um livreto que simula os velhos catecismos cristãos, desde o lay-out, com a capa encadernada, à imitação de iluminuras em preto e branco, passando pela editora, que é "do Bispo". Citações da Bíblia dão o tom, mas só o tom, dessa paródia que chuta o pau da barraca de qualquer ídolo, saber encarquilhado e mau humor.

O sexo é que é a medida de todas as coisas -e quanto maior, mais intenso, blasfemo e duradoiro, tanto melhor. E principalmente transgressor. Do elogio da masturbação, contra todos os papas, à receita de comportamento diante de uma mulher com tatuagem nas costas; das vantagens da marca de vacina no braço à orientação para esperar pacientemente a mulher que escolhe roupa para sair; contra o "desmatamento das raparigas" e "a favor dos pêlos", o café sem cafeína, e da "missa de corpo presente", Sá desfia um humor que vai da sutileza à escatologia. Para os pornógrafos, o bom gosto é o gosto do que lhes é bom, arbitrário, anárquico e gargalhante.

O interessante é que embora, digamos "tecnicamente", homens e mulheres se beneficiem ambos dos ritos transgressores da pornografia, a linguagem que a canta, parece, é historicamente masculina, o olhar em riste. Hilda Hilst seria a exceção. E Xico Sá deixa mesmo escapar a nostalgia árcade dos campos, na nossa versão brejeira -as prostitutas são puras como Nossa Senhora das Dores, lindas como "a rainha do lar", são o "cafuné", enquanto as garotas de programa são as patricinhas neoliberais, "com um taxímetro entre as pernas", que arrecadam "como um bispo".

Uma outra questão que o livro suscita é o alcance da blasfêmia, nos tempos de assimilação total de todas as coisas e valores. Como a fé que dá sentido à blasfêmia parece cada vez mais iletrada, a paródia - ao leitor capaz de apreciá-la - perde o caráter corrosivo de sua força original e se transforma em maneirismo; o riso transgressor, a gargalhada (que jamais se oficializa), se transforma aqui no sorriso da compreensão.

Suprema heresia, somos todos pornógrafos. O que ofende os ouvidos mais sensíveis não será uma idéia de corroer, a sensação visceral de uma vida ameaçada pela agressão, mas a simples falta cortesã do "bom tom".

Diante do catecismo de Sá, todo resenhista é um chato, procurando chifre em cabeça de cavalo e pêlo em ovo (epa!). E em nome desse mesmo "bom tom", os trechos citáveis em público são mínimos. Melhor que o próprio leitor, no escurinho da livraria, confira por conta própria esse catecismo de alegrias proibidas.


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