Realismo e transcendência (Trecho)
Cristovão Tezza

Posfácio de:
Flannery O'Connor - Contos Completos.
Editora Cosac Naify, 2008.


Os contos de Flannery O’Connor [1925-1964] constituem um dos mais intrigantes conjuntos de obra da literatura norte-americana, ou, mais especificamente, do Sul dos Estados Unidos, a região que já nos deu escritores do porte de William Faulkner, William Styron, Tennessee Williams e Truman Capote. Trata-se, na verdade, de muito mais do que simplesmente um espaço geográfico; o Sul é, em alto grau, a expressão de uma civilização distinta que se fez ao longo do seu “cinturão bíblico” – repetindo aqui a expressão atribuída ao jornalista Henry L. Mencken [1880-1956] para definir os traços culturais em vários aspectos fundamentalistas dessa região enraizadamente conservadora. Na esteira da derrota do Sul na Guerra Civil americana [1861-65], que aboliu a escravidão, base da economia da região, ficou um trágico segregacionismo racial, explodindo em renitentes manifestações de ódio que avançaram ostensivas até meados dos anos 1960, quando o movimento liderado por Martin Luther King acabou vitorioso, com a Suprema Corte declarando a ilegalidade da segregação. Até então, a região ainda mantinha, talvez tendo como paralelo no mundo apenas a velha África do Sul de triste lembrança, um sistema de apartheid, compartimentando negros e brancos em seus respectivos lugares, já a partir dos mesmos ônibus públicos que os transportavam – sem falar de instituições oficialmente mais ou menos toleradas, em bolsões de atraso, de defesa do ódio racial, como a Ku Klux Klan. O cinema americano já explorou à exaustão esse tema incômodo, anacronicamente incrustado no país que afinal inventou e desenvolveu a democracia moderna.

Ao lado do racismo, há outro traço que marca o Sul de maneira igualmente profunda e que lhe dá a outra face de seu poderoso pathos literário: o fundamentalismo religioso, que pode ser visto – para fazer uma simplificação didática ­– como um dos aspectos mais agressivos do espírito puritano, o impulso de adequar rigorosamente a vida e o mundo a um ideal religioso essencial e anterior à experiência, um ideal que nos é revelado. Ou, na célebre síntese do incansável Mencken, podemos entender o puritanismo como o medo de que em algum lugar, alguém, por algum momento, possa se sentir bem...

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Contos completos de Flannery O'Connor


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