Reconhecimento do mundo
Guia da Folha. São Paulo, 27 /junho/2008

Cristovão Tezza

NOVO LIVRO DE J. M. COETZEE MISTURA FICÇÃO, AUTOBIOGRAFIA E ENSAIO, MOSTRANDO QUE O ROMANCE É O GÊNERO QUE MELHOR RECRIA AS LINGUAGENS DA REALIDADE EM QUE VIVEMOS MERGULHADOS


A primeira tentação do leitor diante do mais recente livro do sul-africano J. M. Coetzee, prémio Nobel de literatura em 2003, é compreendê-lo como três narrativas distintas que o autor colocou em sequência na mesma página, graficamente separadas por linhas pontilhadas e tamanho de fonte. Nesse aspecto, isso o distingue de antecedentes célebres - "Palmeiras Selvagens", de William Faulkner, em que dois romances diferentes são justapostos capítulo a capítulo, ou "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar, que propõe alternativas na sequência da leitura. Mas, na verdade, "Diário de um Ano Ruim" é uma única narrativa em que três planos concomitantes (e três pontos de vista) avançam visualmente ao mesmo tempo. E a plena recepção que a leitura nos oferece depende dessa simultaneidade, como nos filmes em que duas cenas são mostradas lado a lado. A segunda tentação seria reduzir o livro a esse jogo formal e se contentar com ele, o que esgotaria o interesse da narração em poucas páginas. Na verdade, a obra de Coetzee é uma poderosa realização do potencial da linguagem do romance como forma onívora de reconhecimento do mundo, capaz de se abastecer de todas as linguagens em que vivemos mergulhados e dar a elas a liga que as transforma em experiências pessoais intransferíveis. E, aqui, a experiência é iniludivelmente a do próprio Coetzee, ou "J.C.", como às vezes é nomeado, mas sem nunca se confundir plenamente com ele. É também a obra de um escritor maduro -o personagem que, com mais de 70 anos, especula ficcionalmente sobre todos os temas que o assombraram ao longo da vida, já despido de qualquer ornamento defensivo.

O texto "principal" é um conjunto de opiniões, articuladas em dois diários (o primeiro se chama "Opiniões Fortes"), e escritas pelo registro do ensaio, isto é, da opinião direta sobre as coisas do mundo: versam sobre o Estado, a Al-Qaeda, a política na Austrália, a África, a histeria contemporânea com a pedofilia, o paradoxo de Zenão, as estranhezas da língua, o fim da música "clássica", a importância de Bach, a fotografia de um beijo, a compaixão pelos animais (na vida real, Coetzee é um vegetariano radical). Os textos, curtos, têm uma limpidez e um humor clássicos e poderiam ser perfeitamente uma mera coletânea de ensaios.

As opiniões, entretanto, são quebradas pela moldura narrativa que é afinal o coração do romance e o seu fascínio. Ao mesmo tempo em que lemos os ensaios, lemos, na mesma página, o encontro de J.C. com a bela e tentadora vizinha filipina, em duas vozes -o ponto de vista dele, e, em seguida, o ponto de vista dela. Ficamos sabendo também que as opiniões se destinam a uma antologia organizada por uma editora alemã, o que dá a primeira refração ao texto; e, na sequência, a jovem, de nome Anya, passa a ser a digitadora contratada pelo escritor para passar a limpo o texto. Ele tem Parkinson e não consegue mais escrever com facilidade no computador.

Um terceiro personagem entra em cena, Allan, que vive com Anya, uma figura desagradável do mundo financeiro, um "animal masculino" no próprio olhar do escritor, e cujas falas e opiniões acompanhamos na terceira narração, em suas conversas com a mulher. O romance propriamente dito tem em Anya a sua personagem de fato principal. Com extrema economia narrativa, Coetzee vai nos revelando Anya pela sua própria voz e compondo uma bela e sutil história de amor entre um homem velho se aproximando do fim da vida e uma mulher, cuja aparente vulgaridade dos primeiros momentos cresce em direção a um senso pragmático das afetividades humanas desprovido de cinismo.

Pela permanente reflexão de Anya, as opiniões do narrador se relativizam, ganham o seu toque de falibilidade que é, enfim, a marca humana. Apesar de todo esse jogo de espelhamento narrativo, Coetzee jamais se entrega à sedução da paródia, esse cacoete da pós-modernidade. "Diário de um Ano Ruim" sintetiza, exemplarmente, a inescapável aventura ética que é a alma da grande literatura.


DIÁRIO DE UM ANO RUIM
AUTOR: J.M. Coetzee
TRADUÇÃO: José Rubens Siqueira
EDITORA: Companhia das Letras
AVALIAÇÃO: ótimo
[Guia da Folha] 27 de junho de 2008


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