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Abc da pátria
Folha de S. Paulo, Mais!, 19/junho/2008
ENTRE O IÍDICHE E O INGLÊS, O NOBEL DE LITERATURA ISAAC SINGER REAVALIA SEU PASSADO NAS CRÔNICAS DE "NO TRIBUNAL DE MEU PAI"
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um traço marcante da obra de Isaac Bashevis Singer (1904-1991), escritor judeu nascido na Polônia, e que em 1935 emigraria para os EUA, é o fato de escrever em iídiche -uma língua da família germânica grafada com caracteres hebraicos que, durante séculos, foi o idioma das comunidades judaicas ashkenazis da Europa Central.
Com o Holocausto, o iídiche praticamente desapareceu. Isaac Singer, entretanto, jamais abandonou a língua materna nos mais de 50 anos em que viveu nos EUA, o que cria a singularidade de um autor com "dois originais" -as traduções de Singer, Prêmio Nobel de Literatura de 1978, são feitas a partir do inglês, que por sua vez estabelece o texto "oficial" de sua literatura.
Esse detalhe ilustra um dos aspectos centrais da história do romance -sua linguagem é a confluência e tradução de muitas línguas que são a um tempo códigos e concepções específicas de mundo.
Consciência plurilíngue
E, do ponto de vista biográfico, a vida de Singer, com a infância mergulhada no tenso encontro de línguas, culturas e religiões, pode ser lida como ilustração cristalina do que o teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) chamava de "consciência plurilíngue do mundo". Os textos de "No Tribunal de Meu Pai" são exemplares nesse sentido. Trata-se de um conjunto de crônicas autobiográficas em que a formação do autor é retomada em episódios apresentados mais ou menos em ordem cronológica e que se encerra nos seus 12 anos (quando conhece "uma garota morena com olhos escuros como carvão e um sorriso indescritível").
O tribunal a que o título faz referência é a instituição judaica do "Bet Din", o tribunal rabínico. Filho de um rabino de Varsóvia, o futuro escritor passou a infância impregnado de um senso de justiça religiosa em que se atravessam a pobreza, a onipresença da palavra escrita como fonte de referência da "verdade", a disputa das várias correntes conflitantes que marcam o judaísmo, a consciência de quem está, do ponto de vista político, em lugar nenhum -e, sobretudo, o peso da idéia de lar se confundindo com a idéia de tribunal.
Se nas mãos de Kafka esse último ingrediente daria a síntese aterrorizante que conhecemos em obras como "O Processo" e "O Castelo", em Isaac Singer -um escritor de raiz substancialmente popular, imerso na oralidade e no humor vivaz, comunitário, do mundo da aldeia- o resultado é outro.
A diferença central talvez seja esta: no mundo das memórias infantis de Isaac Singer, as coisas ainda não estão estratificadas na forma de Estado, não são regulamentos inalterados por mãos humanas.
Sinais escritos
O juiz é um homem de substância simples que tem de resolver questões miúdas do cotidiano, casos de divórcio ou dúvidas sobre a pureza de gansos abatidos. O senso de justiça é uma insegura escolha humana, a partir de alguns poucos sinais escritos, aos quais devemos dar um sentido.
O sentimento de mudança permanente, muito forte -mudança física e mental, política, social e econômica, ao deus-dará entre poloneses, russos, alemães, austríacos naquele sombrio limiar da Primeira Grande Guerra-, vai marcando cada passo da criança atenta, que pouco a pouco percebe o anacronismo da ortodoxia paterna e absorve a perspectiva transformadora de seu irmão mais velho, depois o poder da literatura, num tempo de utopias.
A força documental das crônicas, ao descreverem o mundo desaparecido, é temperada pela perspectiva literária -a história de Isaac Singer é a percepção de um escritor, não o documento frio de um historiador.
Em nenhum momento se perde a perspectiva da criança e a sensação de um mundo a descobrir e inventar; e, em cada crônica, está presente a afirmação absoluta do valor do indivíduo, princípio e fim de todas as dúvidas: "Como era vasto o mundo, e como abundavam nele todo tipo de pessoas e acontecimentos estranhos! (...) E onde estava Deus, de quem tanto se falava em nossa casa? Eu estava maravilhado, encantado, extasiado. Sentia que precisava solucionar esse enigma, sozinho, com meu próprio discernimento".
NO TRIBUNAL DE MEU PAI
Autor: Isaac Bashevis Singer
Tradução: Alexandre Hubner
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 49 (360 págs.)
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