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Em contos, autor flagra o que falta na vida miúda de todo dia
Folha de S.Paulo , 06/09/2008
Relações amorosas são foco do cronista tardio James Salter
CRISTOVÃO TEZZA
Aos 82 anos e com mais de uma dezena de livros escritos, entre
romances, contos e memórias, o pouco conhecido escritor americano James Salter é dessas raras boas surpresas que a literatura às vezes nos reserva. No Brasil, a Imago publicou o romance "Um Esporte e um Passatempo" e o livro de memórias "Dias Intensos", sobre suas experiências como piloto de guerra. E a Companhia das Letras acaba de lançar "Última Noite", coletânea extraída de seus dois livros de contos, o primeiro de 1988. Salter é um contista tardio, o que talvez explique a intensidade enxuta de quem não tem mais tempo a perder com nada acessório. Seus contos se inserem na tradição marcante do realismo americano do século 20, debruçado sobre as classes médias urbanas, famílias instaladas em casas confortáveis e sentimentos humanistas -uma mitologia inteira já se fez de texto, imagem e palco em torno desse universo. A indústria cultural transformou isso em seu grande produto, com o final feliz de sempre, falso e divertido. Já a boa literatura existe para nos dizer o que falta. Esse mundo -o da falta- é o de Salter. Seu foco é a relação amorosa, nas mãos dele um campo de testes da transcendência possível na vida miúda de todo dia. Seu texto avança por lacunas súbitas entre uma frase e outra, a respiração suspensa, o olho atento no detalhe -há uma assustadora ausência de ênfase em tudo que ele nos conta, quase sempre traições que acontecem irresistíveis e que se fingem não serem escolhas. Em "Cometa", a segunda mulher de Phil, bêbada, acusa-o numa festa de ter abandonado a primeira ("Simplesmente foi embora. Quinze anos de casado, desde os dezenove"). Na cena final, voltando com a mulher para casa, o marido procura um cometa no céu; e vê a mulher "tropeçar nos degraus da cozinha". Num jantar festivo entre dois casais ("Meu senhor, Vós"), a chegada do poeta Brennan ("Um bêbado, um fracassado e um grande gênio. E você? Quem você é? Mais uma dona de casa?") desencadeia em Ardis uma ansiedade difusa e erotizada cujo ponto de contato é o cachorro do poeta, que passa a segui-la nos passeios de bicicleta; tenta devolvê-lo ao dono, sem encontrá-lo, mas alguma coisa se corroeu em sua vida. O tema homoerótico aparece em "Entregar", quando Anna pede ao marido que ele abandone um amigo, "para sempre"; com pequenas mentiras, o equilíbrio do casal se restabelece. "Platina" é o caso de um homem que se esforça para simular um amor verdadeiro quando o sogro milionário exige que ele largue a amante. O tema da volta do amor antigo aparece em "Palm Court" e "Bangcoc"; no primeiro, o tempo fez o trabalho sujo de apagar a paixão, não sem seqüelas; no segundo, o homem se ressente da traição da mulher fulgurante que reaparece ("Eu fiz a tolice de querer experimentar alguma coisa diferente. Não sabia que a verdadeira felicidade é ter a mesma coisa o tempo todo"), e resiste a ela. Há um toque de inocência infantil no mundo amoroso dos contos, como se Salter flagrasse em pinceladas cortantes a imaturidade dos que não têm armas para lidar com a utopia que parece sempre estar ao alcance da mão.
ÚLTIMA NOITE
Autor: James Salter Tradução: Samuel Titan Jr. Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 39 (176 págs.) Avaliação: ótimo
Trechos
Eu fiz a tolice de querer experimentar alguma coisa diferente. Não sabia que a verdadeira felicidade é ter a mesma coisa o tempo todo
Do conto "Palm Court"
Simplesmente foi embora. Quinze anos de casado, desde os dezenove
Do conto "Cometa"
Um bêbado, um fracassado e um grande gênio. E você? Quem você é? Mais uma dona de casa?
Do conto "Meu Senhor, Vós"
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