O som sem sentido
Folha de S. Paulo, Mais!, 15/10/2006


O Silencieiro" acompanha a luta obsessiva de um personagem em busca do silêncio em uma cidade grande

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA


Alguém que dedica sua vida a fugir dos ruídos, em busca de um impossível silêncio -esse é o tema de "O Silencieiro", do escritor argentino Antonio di Benedetto (1922-86). Pouco conhecido entre nós, Benedetto é mais um daqueles casos inextricáveis que costumam florescer na Argentina, como Roberto Arlt, Witold Gombrowicz, Ernesto Sabato e Borges.
Um dos traços em comum desse elenco díspar seria talvez o senso agudo de deslocamento de quem vive em lugar nenhum, de estrangeiro, enfim (como o próprio Gombrowicz, que era polonês).
Trata-se de uma maldição latino-americana, mas que encontra na Argentina uma força literária poderosa. Em alguma cidade da América Latina, um personagem sem nome, jovem candidato a escritor, trabalha num escritório e vive com a mãe, viúva; tem um amigo, Besarión, e conhece duas moças, Leila (que ele ama) e Nina (com quem se casa). Com esse enxuto esqueleto narrativo -ao longo do livro pouco saberemos dos personagens além das informações acima- o texto acompanha a luta do protagonista em busca do silêncio, uma atividade que é de fato a preocupação central de sua vida inteira; nada mais o interessa.
Viver é mudar interminavelmente de uma casa para outra, procurando o silêncio. Narrado em primeira pessoa, acompanhamos a solidão encrespada de alguém incapaz de transigir um afeto, de transcender seu solipsismo absurdo, de nos falar de outras coisas; e, no entanto, ele nos prende.
É mesmo com volúpia que o narrador mergulha em seu inimigo, o ruído, no seu realismo cru, para dali extrair a essência que sustenta a história: "Os mecânicos dissecam motores, alguns sob o olhar precavido do dono do carro; fendem e limam com chiados coisas de metal; testam a seco o motor recém-consertado, aceleram fundo e ruge a máquina; acionam um escapamento, e este gaseifica com uma cadeia de explosões".

Fugas possíveis
Farejando a todo instante a ameaça iminente dos ruídos -a oficina mecânica, o alto-falante, a festa no bar, o ônibus imóvel com o motor ligado, os rádios em toda parte-, o "silencieiro" maquina as fugas possíveis daquele inferno (nada mais que a vida comum em qualquer cidade), desde os tampões de cera no ouvido até, finalmente, o crime, depois de buscar todas as tentativas legais de obter silêncio.
No comovido prefácio que abre o livro, o conterrâneo Juan José Saer (1938-2005) define a prosa de Benedetto, no universo argentino, como "a mais original do século", de alguém que não recebeu influências. Há certamente exagero na afirmação (sente-se nele, por exemplo, a presença de "O Estrangeiro", de um Albert Camus já aculturado -o crime do silencieiro tem um motivo), mas a originalidade bruta deste autor é inegável.
A narrativa não se entrega de fato a nenhum registro mais ou menos típico, embora dê ao leitor sempre a sombra de uma familiaridade.
A idéia de que estaríamos diante de uma fábula kafkiana não se sustenta, porque de fato não há nada, digamos, "onírico" no livro -ele é de um realismo atroz, e esse cruzamento de intenções (uma suposta parábola moral sendo contrariada pelos estritos regulamentos da vida cotidiana) cria uma ambigüidade difusa e angustiante.
Ao mesmo tempo, é um homem que nos fala de sua luta no momento mesmo em que ela ocorre -a presentificação narrativa é outro elemento forte de empatia; e, tomadas as cenas em seu isolamento, elas são "verossímeis".
Não há nada de extraordinário em reclamar do vizinho ao síndico ou à prefeitura do bar da esquina -pois o nosso herói não faz outra coisa na vida. O que é outro engano: na verdade, ele não nos "conta" outra coisa.
Quando casou, por exemplo, diz apenas, num parágrafo de duas palavras: "Tomo esposa". E prosseguem as mudanças em busca da paz.

Força da linguagem
Chegamos aqui à força da linguagem que constrói o texto, um estilo que em si já é uma crise de visões de mundo. O revolucionário que busca o silêncio e que sonha com o livro que irá escrever se expressa sob a camisa-de-força de uma interessantíssima formalidade parnasiana, como nesta maravilhosa descrição do uso de um torno mecânico: "Sigo do torno a laboriosa andança, o curto trecho que preludia a fricção do metal, anterior à pausa, seu respiro, que me concede um instante de esperança, e, mal a deixa nascer, já a destruiu".
Há solenidade em tudo: "O alimento que ingiro no almoço não se amolda a seu destino imperceptível". Mas também no estilo supostamente engravatado aparece um contraponto ríspido em frases curtas, nos diálogos irritados, como se a "sobranceria" que vê o mundo do alto -esse atavismo hispânico- respirasse num habitat impossível, esmagado de ruídos, incompatível com a grandeza sonhada, a única capaz de justificar a vida.


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