Onetti
Folha de S. Paulo, Mais!,15/04/2007


Clássico latino-americano de 1961, "O Estaleiro" constrói um mundo hostil a partir de lances de linguagem

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O nome do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-94), autor de uma obra vasta e respeitada, não chegou a conhecer a popularidade de outros latino-americanos que, no rastro do impacto de "Cem Anos de Solidão" [ed. Record], de Gabriel García Márquez, nos anos 1960, fizeram da América espanhola um centro de referência literária em que brilharam, além de Márquez, Vargas Llosa, Borges e Cortázar, para lembrar as estrelas que ganharam o mundo.

Os traços desse movimento espontâneo seriam (aqui grosseiramente simplificados) o olhar fantástico sobre a realidade, a candência das questões políticas e a idéia de "povo" como categoria mítica já sem os chavões da Guerra Fria, girando em torno dos velhos complexos da "identidade nacional".
Mas Onetti, publicado no Brasil nos anos 1980, passou ao largo do entusiasmo do período. O lançamento atual de "O Estaleiro", de 1961, considerado sua obra-síntese, permite-nos reavaliar a sua importância.

A trama do romance é simples: a cidade literária de Santa Maria assiste ao retorno de um certo E. Larsen, o "Junta-Cadáveres" de outro livro seu (curiosamente escrito mais tarde), que dali havia sido expulso por tentar montar um bordel.

Por um salário incerto de 5.000 ou 6.000 pesos, Larsen aceita ser o gerente-geral de um estaleiro em ruínas, propriedade de um magnata falido, e tem a seu serviço dois diretores inúteis. Aquela equipe fantasma passa a freqüentar diariamente o estaleiro corroído pelo tempo, em que todos fingem alguma solidez profissional enquanto fazem rigorosamente nada.

O cenário desolado daquele cais conta ainda com um albergue decadente, um balcão de bar e algumas mulheres sem nitidez -em momentos, parece que estamos numa cena de faroeste, habitada por nomes exóticos como Kunz, Larsen, Petrus.
A sensação de absurdo -nada faz sentido- talvez incomode o leitor que tente criar alguma empatia.

Voz do povo

O narrador é uma espécie de voz do povo, de uma onisciência ambígua -"não se sabe como chegaram a encontrar-se Jeremias Petrus e Larsen", dirá num momento; e, em outro, afirma: "Suspeitou, de repente, o que todos chegam a compreender, mais cedo ou mais tarde: que era o único homem vivo num mundo ocupado por fantasmas".

Mas, como Onetti é da família dos escritores que amam mais as palavras que os fatos, a estranheza vai se sustentando a lances de linguagem, e nela se ergue um mundo hostil, tenebroso, inacessível, rigorosamente inexplicável, uma sociedade como que desprovida de indivíduos, cujas vontades são sopros sem comando.

Num momento, Larsen pensa nos "atos ainda desconhecidos que começaria a cometer, um após o outro, sem paixão, como se apenas emprestasse o corpo".

A magnífica imagem de um imenso estaleiro em ruínas sob as ordens de funcionários que fingem viver a plenitude de um trabalho -a mais bela do livro- nos leva num momento à ilusão da alegoria, como se se tratasse de uma obra simbólica.

Mas o narrador também nos arranca dessa interpretação tranqüilizadora (a decadência latino-americana transformada numa fábula "poética") e nos devolve ao mundo miúdo das causas e dos efeitos.

Pessimismo radical

Larsen justifica-se imaginando que, assumindo o cargo fictício, ganhará no futuro sua parte do espólio, supostamente sempre a poucos dias de se resolver juridicamente, quando o antigo fausto industrial renasceria sobre os escombros das dívidas.
Ninguém acredita de fato nisso, como de resto em coisa nenhuma, mas todos são incapazes de verbalizar a descrença -eles vivem da própria fala.
Enquanto isso, vendem a sucata do estaleiro a russos misteriosos (aqui a lembrança da Guerra Fria é inevitável), repartindo um butim miserável que mal lhes permite sobreviver mais alguns dias.

Um dos diretores guarda como um talismã ameaçador um título falso assinado pelo ex-magnata, que, tornado público, enterraria para sempre o sonho do renascimento.

O curioso é que aquilo que dá "sentido lógico" à narrativa acaba por torná-la mais absurda ainda -e é exatamente isso o que deseja Onetti, mestre de um pessimismo radical, para ele a única porta de entrada para a realidade.


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