Cortinas de fumaça
Folha de S. Paulo, Mais!, 13/08/2006


Nobel de Literatura, Kawabata tematiza, em dois romances, o choque de civilizações no Japão do pós-guerra

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA


No ensaio "O Elogio da Sombra", o escritor Junichiro Tanizaki (1886-1965) diz que alguém que pretenda construir uma casa em puro estilo japonês terá de se preparar para sofrer com a instalação da eletricidade, a água e o gás. Será preciso camuflar cabos, interruptores e mesmo o telefone e o ventilador, num "exagero de artifícios". "Pureza" significa uma essência fora da história. A imagem de Tanizaki serve como metáfora para o dilema da literatura moderna do Japão, que extrai do choque entre Ocidente e Oriente as tensões de sua arte. Luta para manter-se fiel a um mundo que se assume imemorial, ao mesmo tempo em que absorve o olhar histórico do "homem incompleto" da literatura ocidental. É um choque tão poderoso que às vezes assume o suicídio como última expressão de sua cultura -uma cultura em que o próprio conceito de "indivíduo" não tem o significado fundador de identidade como tem no imaginário do Ocidente. A obra de Yasunari Kawabata (1899-1972) é um paradigma desse dilema. Dois novos lançamentos, em bem-cuidadas edições, "Kyoto" e "Mil Tsurus", permitem conhecer um pouco mais este autor. "Kyoto" (1961) é quase uma defesa implícita da "alma nacional", simbolizada na cidade de Kyoto, antiga capital do império. Marca de Kawabata, o gancho narrativo é mínimo. Na sua delicada representação, homens e natureza se confundem na mesma aquarela, e os gestos da cultura humana parecem estar todos a serviço de uma ordem imemorial e intocável. "Trinta centímetros separavam as violetas de cima das de baixo. Chieko, que chegava à plenitude da mocidade, às vezes perguntava a si mesma se elas se encontrariam algum dia. Será que se conheciam?" -reflete a personagem central.

Criança abandonada
Ela observa nas violetas brotadas num tronco o destino que, afinal, era o dela própria: nascida em família pobre, foi abandonada na porta de um atacadista de tecidos; para trás ficou uma irmã gêmea, que conhecerá por acaso. Entre elas, está Hiedo, jovem tecelão de "obis" (faixas que prendem os quimonos na cintura), que se apaixonará por uma e, depois, por outra das irmãs. Esta breve intriga de sabor clássico e popular, temperada pela figura de Takishiro Sada, pai de Chieko -comerciante à antiga, deprimido pela modernização do país- vai discretamente amarrando o texto, que se detém na descrição da natureza e dos festivais populares de Kyoto, narrados às vezes com um tom direto de documentário. "Kyoto" é uma obra conservadora num sentido amplo -preserva as marcas de uma literatura que existe para cantar o mundo, e não para contestá-lo (um dos traços longínquos da linguagem épica). A pintura é um dos temas-chave; os motivos dos desenhos que o tecelão Hiedo realiza em seus obis se confundem com a natureza que retrata. A estranheza do mundo está no insondável mistério de todas as coisas, mistério que é antes objeto de veneração que de investigação. O narrador pensa pelos personagens de forma plana e integral. Não há ênfase ou sentimentalismo –homens e natureza partilham a mesma tradição e a mesma inescrutável beleza.

Aprendiz de gueixa
Assim, quando o velho Takishiro, numa casa de chá, é apresentado a uma menina que se prepara para se tornar gueixa -o que, no Ocidente, sugere inequívoca pedofilia-, diz que ela seria uma "maiko" (aprendiz de gueixa) de primeira. No quadro da cultura japonesa que Kawabata canta, os papéis do homem e da mulher, assim como a rígida estratificação social, estão tão estabelecidos como os cedros de Kitayama e os festivais milenares da cidade. Naturalmente, ainda é o Japão dos anos 1950, mas, sinal dos tempos, Kawabata deixa entrever numa cena curta o fascínio dos clientes de uma loja por um radinho Sony. Em "Mil Tsurus", que significa "mil aves", encontramos um Kawabata em estado puro -aqui a intenção estética se realiza inteira, sem o proselitismo de "Kyoto". A fábula é econômica: o jovem Kikuji, após a morte do pai, balança seu coração entre duas pretendentes: Fumiko, filha da viúva que foi amante de seu pai, e Yukiko, uma jovem que a alcoviteira Chikako pretende casar com ele. A própria Chikako -que tem uma mancha escura em um dos seios, uma lembrança marcante do protagonista quando criança- também viveu um caso com o pai de Kikuji, o que dá ao enredo um clima sutil de sugestões eróticas difusas e vagamente incestuosas. A narração avança em torno dos rituais de cerimônias de chá e do denso simbolismo de porcelanas clássicas, objetos que têm quase o peso narrativo das figuras humanas que os manuseiam.

Indefinição
Há um teatro delicado no gestual e nas falas do texto de Kawabata. Não fossem alguns raros sinais de modernidade -o telefone, por exemplo-, leríamos uma obra sem idade sobre figuras arquetípicas. O que sentimos de contemporâneo é justamente a indefinição, a inconclusão das cenas, a neblina que suaviza o drama e transforma a todos em figuras de sonho, sob a sombra exigente de mil anos de história. Como se frisou no discurso de recepção do Prêmio Nobel que Kawabata recebeu em 1968, quatro anos antes de se suicidar, encontra-se nele uma clara tendência de "nutrir e preservar uma tradição de estilo genuinamente nacional".


voltar