O fracasso da razão
Folha de S. Paulo, Mais!, 09/10/2005

A rainha dos cárceres da Grécia ,
de Osman Lins

Obra de Osman Lins agora relançada assimila a tal ponto os marcos teóricos e os modismos de seu tempo que se torna uma "pérola única", sem descendência, "preciosa e datada como um baú do tempo"

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa entrevista de 1976 (Revista "Escrita", nº 13), o escritor Osman Lins (1924-1978), autor do romance "Avalovara" (Companhia das Letras), publicado em 1973 com grande repercussão, faz três observações que sintetizam parte do imaginário literário daquela década no Brasil: o mercado editorial brasileiro estaria perniciosamente dominado por uma "literatura epidérmica"; a arte contemporânea se equivocava ao "voltar as costas para o cosmos"; e, referindo-se à prosa, diz que o romancista não quer mais iludir o leitor, não propõe um "simulacro da vida", mas "personagens feitos com palavras".

Olhando retrospectivamente, o mergulho no tempo revela suas fontes: a ascensão na crítica universitária do estruturalismo francês, com status de ciência da literatura e retomando os dogmas formalistas da revolução teórica dos anos 1920 ("arte é procedimento"), aqui relançados, anos antes, pelo movimento concretista; o prestígio da escola de Frankfurt, que alerta sobre os perigos da "reprodutibilidade da obra de arte", transformada em mercadoria, para consumo, digamos, epidérmico; e finalmente, em outra direção, os ventos do espiritualismo oriental - sob o aroma ainda inocente da cannabis, tribos de bichos-grilos anunciavam um novo tempo de paz e amor. Enquanto isso, a ditadura corria solta.

Ter esse quadro em mente talvez seja um bom método para reler "A Rainha dos Cárceres da Grécia", do mesmo Osman Lins, agora reeditada. Em forma de diário, um professor propõe-se a comentar o romance inédito, de mesmo título, escrito pela sua ex-mulher, Julia Marquezim Enone. O livro de Julia, por sua vez, conta a história da pobre Maria da França, que tenta, e não consegue, se aposentar pelo INPS.

Sob este álibi, a narração faz uma multifacetada colagem de citações, num tom ornamental de ensaio literário. Assim, a obra absorve quase sem refração recortes reais de notícias de jornal, inesgotáveis citações de obras científicas e literárias, com a devida informação bibliográfica em notas de rodapé, e fragmentos teóricos, entremeados aqui e ali por trechos da suposta obra de Julia. Ao final, uma espécie de delírio sintático-semântico-lexical acaba por corroer qualquer tentativa de fazer do texto um "simulacro da vida" em que o olhar do leitor pudesse concentrar os sentidos.

A destruição como projeto

A essa altura, é o caso de repensar menos a obra e mais o seu pressuposto, aquilo que a destrói como ficção (de acordo com o projeto do autor). O primeiro aspecto a considerar é a ilusão, aliás poderosa, de que existe linguagem sem sujeito. Em vários momentos, o texto dá aulas mais ou menos lapidares ("Declina o romance atual do que foi ponto de honra no passado e respondeu por tantas dissimulações mais ou menos ingênuas"), que marcam o desejo de não criar simulação: "Quero um ensaio", diz o narrador, "que estabeleça com o leitor -ou cúmplice- um convívio mais leal".
Por coerência, a linguagem técnica é dominante. Para "não enganar o leitor", o texto não nos dá distância, e o contraponto paródico, potencialmente explosivo na literatura, jamais se realiza de fato, porque o narrador leva-se a sério o tempo todo -no tom solene do seu discurso não se vislumbra a menor ironia.

O problema é que, como ficção histórico-ensaística (uma linha presente na literatura moderna), "A Rainha dos Cárceres da Grécia" resulta apenas num agrupamento de ilustrações fragmentárias que não se concentram em nada -falta-lhe a visão de mundo que lhe daria sentido, o que exige mais do que apenas um "personagem de palavras". É curioso que o império da citação, como marca de estilo de época, continua vivo, sempre sob o imaginário metafísico da "morte do autor" e da "impossibilidade de dizer". O que em Jorge Luis Borges era o charme discreto de um clássico contador de histórias se transformou, na virada do século, em um ideário estético completo. Talvez a questão central que Osman Lins antecipa sem querer seja a crise de uma linguagem que se recusa a assumir a responsabilidade plena do que diz.

O "não-dizer" de Osman Lins poderia ser compreendido como uma referência à ditadura militar então vigente, mas isso seria forçar demais a interpretação do texto. Na verdade é a outra preocupação do autor -o "cosmos" como valor- que nos dá a chave de um discurso místico e englobante ainda latente nos anos 70 e que hoje parece explodir em toda parte. Nesse olhar, o fracasso da literatura seria, por paralelismo, uma das faces do fracasso da razão para dar conta dos fatos do mundo.
Curiosamente, o formalismo científico que inventou a morte do narrador se encontra aqui com o irracionalismo que faz da linguagem um valor autônomo, religioso ou não, e não uma experiência laica enraizada na história e realizada na palavra. Em literatura, é sempre bom que a mão esquerda, a da ficção, não queira imitar muito o que faz a direita, a da teoria.

A obra de Osman Lins, ao assimilar tão completamente as tentações teóricas do instante presente, se transformou nessa pérola única, sem antecedentes nem descendência, preciosa e datada como um baú do tempo.


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