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Crônica de uma vida de mulher
de Arthur Schnitlzer
O Estado de S. Paulo, 09/11/2008
Onde o afeto é frio e incompleto
Cristovão Tezza
O escritor austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931) viveu intensamente as transformações culturais que marcaram a passagem do século 19 para o 20. Habitante de uma Viena mítica, e contemporâneo de figuras como Robert Musil, autor do clássico Um Homem sem Qualidades, e Sigmund Freud (que era, aliás, seu leitor devoto), para citar duas referências capitais daquele também mítico Império Austro-Húngaro que se perdeu nas franjas da história, Schnitzler simboliza perfeitamente o seu tempo. A tal ponto que o historiador Peter Gay o escolheu como referência central de uma obra sobre a formação da cultura de classe média no Ocidente (O Século de Schnitzler).
O romance Crônica de Uma Vida de Mulher (com organização, prefácio e glossário de Marcelo Backes), publicado em 1928, três anos antes de sua morte, é uma ótima síntese de sua estética e de seu imaginário transformador. A obra de Schnitzler concentra-se basicamente na vida íntima, sexual e psicológica das pessoas, num mundo de moral vitoriana vivendo a turbulenta mudança de costumes que acompanhou ascensão definitiva da permeável cultura burguesa sobre os escombros da estratificação da nobreza. O sexo moderno, digamos assim para tentar entender como ele passa a ser percebido nesse período de transição dos quadros sociais e familiares, é quase que o objeto central da literatura de Schnitzler (que era médico, profundamente interessado na área psiquiátrica), ainda que as vias de fato da sexualidade, a sua explicitação formal, levasse ainda um bom tempo para sair dos bastidores pudicos e se encontrar com a luz do sol na mão de escritores como D. H. Lawrence e Henry Miller. Em Schnitzler, só há o antes e o depois - o ato em si fica na sombra. O curioso é que Schnitzler foi ele próprio a sua cobaia: conforme nos conta Peter Gay, o escritor viveu centenas de casos amorosos pela vida, todos anotados detalhadamente no seu diário.
Crônica de Uma Vida de Mulher conta a história de Therese Fabiani, filha de um militar (que enlouquece) e de uma escritora medíocre de folhetins românticos, e irmã de um estudante de medicina anti-semita?, como boa parte da Áustria de então, e entusiasta do nascente nacional-socialismo. Therese passa uma existência solitária e sombria tendo casos passageiros de amor, um depois do outro, sobrevivendo duramente como preceptora de crianças. O universo afetivo de Sehnitzler é sempre frio, angustiante e incompleto. No meio do caminho, Therese tem um filho, naturalmente indesejado, que é mantido por terceiros, ainda que ela mantenha um tênue laço de mãe; e esse filho será a raiz de sua tragédia anos depois.
No livro, a voz do narrador é soberana; tudo que sabemos, sabemos pelo seu olhar, que só raras vezes passa a palavra aos personagens - como no final, quando ocorrem alguns diálogos dramáticos. Mas essa aparente simplicidade narrativa, que avança metódica pelo implacável tempo cronológico com a frieza de um inventário, deixa sempre entrever os fios de tensão social, ética e moral daquele tempo e daquele espaço. E são visíveis na obra os traços de sua genealogia literária. Em vários momentos percebese a presença da inspiração gótica, poderosa na tradição romântica: Quando chegou ao quarto, sentiu seu coração vazio e pesado. Estava sentada sobre a cama, na escuridão, e olhava pela janela aberta em direção à noite abafada e negra. Os tempos, entretanto, são outros; essa moldura melancólica e anacrônica serve de fundo ao mundo dos desejos inconscientes do indivíduo, potencialmente desagregadores (como queria Freud): Ela tinha sonhos lascivos, horríveis e belos; mas era sempre com os braços de desconhecidos. A natureza é um participante hostil (um anoitecer frio e carrancudo); o mundo, uma aparência enganadora (Falsidade e astúcia por todo canto). Numa frase simples do narrador, vemos a síntese da percepção que o indivíduo tem diante daquele novo mundo que arrastava os fantasmas de um passado inútil: Therese sentiu apenas uma coisa: como sua própria vida era vazia e sem esperança.
A intensidade psicológica da obra de Schnitzler não descura entretanto do pano de fundo social, um aspecto que terá ramificações em todo o século 20. Pode-se especular que um autor como o italiano Alberto Moravia (1907-1990) descende do universo de Schnitzler, e um clássico como A Romana (de 1947), sobre a vida de uma prostituta durante o fascismo italiano, tem parentesco com a crônica de Therese. Quando Therese procura alguém que lhe interrompa a gravidez, a mulher que a atende não tinha ilusões acerca do caráter ilegal de sua atividade, mas disse que as leis cruéis não eram capazes de levar em consideração as relações sociais, e concluiu (...) que para a maior parte das pessoas a melhor coisa no fundo teria sido jamais haver nascido. Crônica de Uma Vida de Mulher é um belo retrato da solidão feminina, uma solidão ambivalente, à solta num mundo social novo, mas ainda respirando cacos do imaginário e da fantasia de um velho tempo.
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