Paula Fox sintetiza realismo americano
Folha de S. Paulo, Mais!, 7/04/2007


"Desesperados" é ambientado em 1968 e traz marcas de boa parte da literatura dos EUA, de Hemingway aos grandes dramaturgos

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA


Uma síntese do realismo americano da segunda metade do século 20: objetividade cortante, lapidada em frases curtas e pontos de vista desencontrados, um intimismo em voz alta tentando achar seu lugar antes no espaço que na alma, sempre exasperantemente vazia -eis um modo de definir a literatura de Paula Fox. Aos 83 anos, autora de romances escritos entre 1967 e 1990, ela está sendo redescoberta, e a julgar por "Desesperados", lançado agora no Brasil, perdemos muito em não conhecê-la antes.

É surpreendente a atualidade desta narrativa que se passa praticamente em três dias de 1968 e que parece ter sido escrita nesta manhã. São páginas econômicas, controladas por um narrador atento, mas frio, que acompanha o cotidiano desgastado de um casal sem filhos, sempre pelos olhos da mulher, Sophie.

Ela é uma tradutora; ele, Otto, um advogado que está se separando do sócio de muitos anos. Ambos vivem uma espécie mal formulada de "fim de caminho", e no olhar de Sophie sentimos aquele desejo brutal de não mentir que é parte inseparável do puritanismo americano, ao mesmo tempo que a realidade vai destruindo todos os sonhos de pureza.

Imaginário americano

O gancho narrativo é uma metáfora de certo imaginário da cultura americana -tentando agradar um gatinho dando-lhe leite, Sophie é mordida por ele, e a injustiça metafísica parece explicar a sua vida inteira. Há uma persistente corrosão do espaço em que vivem - bêbados e vômitos nas calçadas, pedras nas janelas, pobreza agressiva, a crescente presença dos negros e o sentimento azedo de culpa da elite branca.

Vive-se a percepção ambígua de que o ideário da liberdade (estamos em 1968) está saindo do controle: a casa de campo é depredada sob o olhar complacente do caseiro, sente-se a degradação do espaço público e o pudor de expressar o medo, quase como se eles estivessem "tendo o que merecem". Num momento, Otto confessa: "Gostaria que alguém me dissesse como viver". O retrospecto que Sophie faz de sua vida é angustiantemente seco, em que emergem, como pontas agudas, um amante avulso e uma mãe com quem não consegue conversar; e o cotidiano com o marido é um escorrer de mentiras tensas com pequenos e limitados golpes de verdade.

Na linguagem de Paula Fox encontramos marcas recorrentes de boa parte da literatura norte-americana, da frase enxuta de Hemingway (aqui desprovida de sentimentalismo) à tensão do texto de seus grandes dramaturgos. Em alguns momentos, ouvimos ecos do humor de Dorothy Parker ("o meu conhecimento não é páreo para a ignorância dele"), e em outros quase entramos num filme de Woody Allen, assistindo ao tédio da classe média letrada querendo fazer o bem. Esses "estilos de época", entretanto, vão sendo soterrados por uma nitidez narrativa única, que, sem remissão nem má poesia, tira a esperança das nuvens, da vida social, do Estado ou de Deus, e coloca-a na medida curta dos nossos passos.


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