O Tudo e o Nada - 101 crônicas,
de Carlos Heitor Cony
Folha de S. Paulo, Ilustrada, 1/05/2004

Cristovão Tezza


Gênero fugaz por natureza, a crônica é feita para ser esquecida. Como jornalismo, costuma se esgotar no esgotamento mesmo do fato; como literatura, tem em geral a ambição tranqüila da orelha, a do livro e a do ouvido, atenta discretamente às sugestões do mundo. O impacto da crônica está no seu tamanho - e há, parece, algo incompatível entre a crônica e o livro e a idéia de perenidade que este supõe. Sozinha, ela brilha; em conjunto, quase sempre naufraga na redundância e no cansaço de seus truques, assim visíveis um ao lado do outro.

Sustentar portanto uma coleção de crônicas que fique em pé é tarefa de mestre - e é justamente isso que encontramos em "O Tudo e o Nada", conjunto de 101 crônicas de Carlos Heitor Cony. O caso de Cony é especial: desde a publicação de O Ventre, em 1958, no terreno da literatura, e da retórica brilhante e virulenta dos tempos de O ato e o fato, sobre a ditadura nascente do golpe de 64, na área do jornalismo, ele tem sido um dos mais notáveis "escritores militantes" da cultura brasileira dos últimos 40 anos.

O livro é uma antologia não de suas crônicas políticas diárias, mas dos textos semanais mais longos do caderno Ilustrada, publicados de janeiro de 1998 a janeiro de 2004. Livre do comentário político imediato, ele percorre um amplo leque de temas sob dois enfoques principais. Um deles é o do comentarista da cultura, alguém que olha para o mundo não como o "turista cultural, mas como peregrino": "Fui a Roma (...), a Jerusalém e a Atenas. Três cidades que fundaram o Ocidente, que, de certa maneira, formaram aquilo que sou, penso ou deixo de pensar." Com um humor melancólico, e sob o peso da formação clássica de um ex-seminarista que trouxe da juventude os grandes temas e dilemas de sua vida, Cony percorre os fatos do mundo não atrás de sua grandeza, mas de olho em suas pequenas e universais misérias, sempre com uma graça suave. Do ridículo das revoluções brasileiras ao lugar-comum do cinema, da paixão pela Itália ao Grande Satã, a leitura de Cony leva-nos pela mão com leveza e arte.

Mas um outro enfoque, ou "narrador", transparece no conjunto: o próprio Cony. As crônicas, pela repetição das formas e pela pouca distância que deixam entre o autor e a palavra, acabam por revelar traços do escritor em camadas mais densas. Texto a texto, vamos descobrindo que a morte, por exemplo, é o seu grande tema - para onde quer que se mova o olhar do cronista, é sempre o fim das coisas que nos dá sentido. No seu mundo, toda alegria é acompanhada de sua sombra. Há uma culpa imemorial no fato de estar vivo; viver é tolerar-se. Encerrando um texto sobre Chaplin, Cony lembra-nos de que "em algum lugar, em algum tempo, por algum motivo, cometemos um crime horrendo, de cuja expiação somos impotentes." Escrever é exercer a infelicidade: "Foi tão bom esse tempo", diz ele sobre o tempo feliz em que viveu em Ipanema, "que deixei de escrever".

Há mergulhos literários surpreendentes neste pessimismo. "O pai, a mãe e os filhos", por exemplo, é alguma estranha comunhão de Nelson Rodrigues com Dalton Trevisan, realizando um roteiro onírico de Kafka. Às vezes, encontramos um Cony tentativamente lírico, como em "Receita da amante ideal" - o tema é uma espécie de soneto da crônica carioca, talvez o próprio autor dissesse, como em outro momento recorda o fascínio de outrora pelos sonetos - mas mesmo ali, parece, são nossas misérias que valorizam a mulher amada. Nesta face sombria do cronista que em cada frase nos espreita, está quem sabe o seu segredo de dar a esse gênero volátil uma inesperada consistência.

Cristovão Tezza é escritor, autor, entre outros, dos romances "Breve Espaço entre cor e sombra" e "Uma noite em Curitiba", e do ensaio "Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo", todos pela editora Rocco.



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