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Clássicos do Sobrenatural e O Morro dos Ventos Uivantes
Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 19/12/2004
"Clássicos do Sobrenatural" e reedição do romance "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë, reafirmam a vitalidade da narrativa gótica
Um outro mundo é possível
CRISTOVÃO TEZZA
Especial para a Folha
A literatura do sobrenatural -gênero que se inicia no século 18 e atinge seu apogeu no século seguinte com os clássicos "Frankenstein" [1818], de Mary Shelley, e "Drácula" [1897], de Bram Stoker- continua repercutindo vivamente no nosso imaginário, talvez hoje mais no cinema do que nos livros. Mas desde o início foi uma arte difícil, que ilustra um paradoxo histórico: os quadros mentais da modernidade, criados pelo primado iluminista da ciência sobre a superstição, avançavam mais rapidamente que o poder concreto da eletricidade -e afinal continuamos com medo do escuro.
O "romance gótico", como se definiu o gênero, será uma resposta laica ao mundo das trevas que não recorre nem à clássica cosmogonia grega nem ao milagre cristão. Assim, o gótico confina o sobrenatural naquele que é com certeza o seu lugar mais adequado: o reino da ficção.
Um bom panorama do gênero é a antologia "Clássicos do Sobrenatural". Contendo 15 narrativas, o livro contempla tanto grandes nomes da literatura, como Rudyard Kipling [1865-1936] e Charles Dickens [1812-70], quanto autores menos conhecidos aos não-iniciados.
O problema central do gênero está no seu "ponto de verossimilhança" -a narrativa do século 19 foi o império do realismo e contava com um leitor "moderno": como convencê-lo de que os fantasmas existem e aterrorizam? A técnica mais usada é o tradicional narrador onisciente passar a palavra a uma voz alheia que afirmará "ter visto o que viu com os próprios olhos". A narrativa em primeira pessoa é assim um ótimo álibi; ao mesmo tempo cria empatia e relativiza o que diz.
A chave do conflito
Em "Assombrações", de Edward Bulwer-Lytton [1803-73], a primeira frase dá a chave do conflito: "Um amigo meu, homem de letras e filósofo, disse-me um dia, meio zombeteiro, meio sério: "(...) Descobri uma casa assombrada no meio de Londres".". Partilhando-se de início a desconfiança do leitor, fica mais fácil trazê-lo ao escuro do medo. O interessante é o recurso de, ao descrever o sobrenatural, colocá-lo na trilha da ciência, "por espantosos que tais fenômenos possam ser".
Quase sempre o sobrenatural aparece como a expressão vingativa da justiça, que se faz quando o mundo dos homens não respeita o bem e a verdade. Em "Para Ser Lido com Reservas", de Charles Dickens, o espectro de um homem assassinado assombra um membro do júri até que o assassino seja condenado. Em "O Ladrão de Corpos", de Robert Louis Stevenson [1850-94], a corrosão moral de um médico será punida pela visão aterrorizante de sua vítima -"não há descanso para os maus", reforça o narrador.
Nos autores mais modernos -Henry James [1843-1916] e Kipling- a ambigüidade aparece como o toque do mestre. "A Decisão Correta", de James, é um conto em que o sobrenatural se revela apenas uma sugestão a perturbar um autor que mergulha nos papéis de um escritor morto para lhe escrever uma biografia, até que ele desista. Marca registrada de Henry James, a linguagem parece incapaz de centrar os olhos no que vê: a realidade é um objeto inapreensível.
Já Kipling assina o mais belo texto do livro, "Eles", que conta com delicadeza a descoberta fortuita do narrador, quando seu carro se perde numa trilha, de um castelo cheio de crianças que vivem aparentemente sob os cuidados de uma mulher cega. Outro exemplo de ambigüidade está no conto "Os Olhos", de Edith Wharton [1862-1937], em que a perseguição de uns olhos fantasmagóricos leva alguém a fugir de um casamento para passar anos com um amigo na Europa, apresentado a ele pela antiga noiva -a sugestão homoerótica percorre, inocente, a narrativa inteira. Em suma, "Clássicos do Sobrenatural" mantém a qualidade em todos os textos.
Um romance que pode ser lido como uma síntese do gênero é "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë [1818-48], relançado agora com uma antiga tradução de Rachel de Queiroz [1910-2003]. Uma das três célebres irmãs Brontë que escreveram obras de sucesso (as outras são Charlotte, autora de "Jane Eyre", e Anne, de "Agnes Grey"), Emily morreu com pouco mais de 30 anos, em 1848; no ano seguinte, morreria Anne, e em 1855, Charlotte. Filhas de um severo reverendo e irmãs de um pintor, Patrick, que se perdeu na bebida, viveram por suas vicissitudes o próprio destino romântico da época.
"O Morro dos Ventos Uivantes" gira em torno de uma figura poderosa, o terrível Heathcliff, órfão encontrado em Liverpool e adotado para viver no recanto de Wuthering Heights com os irmãos Catherine e Hindley. Rejeitado e humilhado na infância e sob o poder de uma paixão pela irmã adotiva, Heathcliff articula uma vingança demoníaca contra a família que o adotou e, em poucos anos, personificando o mal absoluto, açambarca todas as propriedades e se vinga das humilhações de outrora, sem jamais, entretanto, ter paz de espírito.
Tecnicamente, não é um livro "sobrenatural" -mas a sugestão do terror e a condenação escura ao sofrimento, sob a aura incestuosa de uma família que não se livra de sua própria maldição, fizeram da obra de Emily Brontë um dos maiores sucessos da história do gênero.
Narrativa terceirizada
Seguindo a regra da verossimilhança, a narrativa é "terceirizada": sabemos dos fatos por meio do relato do senhor Lockwood, que por sua vez ouve a história da boca de Nelly Dean, caseira da família.
O leitor atual, que acha realista uma novela da TV, poderá se perguntar como uma história tão inverossímil fez tanto sucesso. Uma leitura mais atenta, porém, vai revelar os traços que deram a esse livro o seu toque diferenciado. É o paradoxo de um mundo escuro, regido sob sombras assustadoras de velas e lampiões e sob os ventos aterrorizantes do espaço rural, submetido ao ideário das luzes e da modernização, com a emergência de novos padrões de relações humanas.
Sente-se na obra, por exemplo, a valorização da família como núcleo da vida, uma novidade do século 19. Também se percebe a invenção da "infância", a criança inocente e feliz já entendida como criança, e não como um pequeno adulto. Há também, muito forte, a idéia da alfabetização como um valor positivo a ser estendido a todos; o próprio livro, aliás, é um objeto de desejo das crianças.
Em contrapartida, o velho Joseph, com sua Bíblia encarquilhada e prenhe de punições medonhas, é tratado como figura ridícula e mesquinha. E, finalmente, transparece o conceito simples de que as pessoas podem se transformar, de que não estamos condenados a nada -o pequeno Hareton, criado por Heathcliff "como um animal", vai permitir, via leitura, a redenção final da família e pelas mãos de uma mulher independente, o que é outra revolução. Como se vê, em vários aspectos é um livro que, além do seu fascínio literário, um século e meio depois tem uma pauta que ainda faz sentido no Brasil de hoje.
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