Em busca do Mickey perdido
Folha de S. Paulo, Mais!, 03/07/2005

A misteriosa chama da Rainha Loana,
de Umberto Eco

Sofrendo de amnésia "afetiva", personagem do novo romance de Umberto Eco recorre ao catálogo kitsch da cultura pop para reencontrar a infância e sua identidade, enquanto o autor esvazia o percurso de emoção

CRISTOVÃO TEZZA

Literatura é arte para cegos - Homero e Jorge Luís Borges, nas duas margens do espectro da literatura ocidental, não me deixam mentir. Mas, nessa longa história, a atração que a imagem, como artefato gráfico, exerce sobre quem escreve sempre esteve presente, ganhando mesmo estatuto próprio com os movimentos de vanguarda do século 20 e com o domínio avassalador do universo visual contemporâneo sobre a abstração supostamente opaca da escrita.

Umberto Eco, mundialmente célebre como o romancista de "O Nome da Rosa" (Nova Fronteira), antes de ficcionista já era bem conhecido como professor de semiótica e autor de obras acadêmicas marcantes - o seu conceito de "obra aberta", um desdobramento dos conceitos estruturalistas então em voga, correu mundo nos anos 1960 e 70. Pois em seu último livro, "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", ele nos presenteia com um "romance ilustrado", um agradável cruzamento de literatura propriamente dita com imagens irresistíveis da cultura de massa que percorreram os corações e mentes da infância e juventude do autor, dos quadrinhos do Fantasma e Flash Gordon a cartazes fascistas da era Mussolini.

A idéia do romance é de uma simplicidade cativante: em decorrência de um derrame, o bibliófilo Yambo perde a memória emocional, afetiva, a ponto de não lembrar o próprio nome, não saber que é casado e que tem filhos, mas conserva todo o resto, em detalhes excruciantes: "Sabia tudo de Alexandre, o Grande, e nada de Alessandro, o meu pequenino". Instado a escrever sobre a infância, Yambo só consegue reproduzir frases feitas e trechos de livros.

O ponto de partida do livro, entretanto, em vez de nos levar em direção a uma experiência humana particular, com suas tensões, vai objetivamente esvaziando o biográfico, no que ele tem de único, ambíguo e semovente, e se tornando o objeto de um ensaio, no melhor estilo "pós-moderno" - e aqui o professor Umberto Eco sente-se à vontade, dono de uma absoluta maestria narrativa.

São duas direções ensaísticas: num primeiro momento, temos uma aula de medicina; e em seguida a historiografia dá o tom. A voz do personagem se confunde quase sempre com a voz do ensaísta - e essas duas linguagens antagônicas, esta com o pressuposto da verdade, aquela com a incompletude essencial de tudo que é vivo, acabam mesmo sendo dominadas pela frieza da ciência. O contraponto são as saborosas reproduções coloridas que pontuam o livro, exatamente como "ilustração", e não como elemento estruturante (a exemplo das belas narrativas visuais de Valêncio Xavier).

O argumento do livro é um gancho poderoso para Eco refazer em detalhes toda a memória da cultura de massa de sua época, e nesse sentido o livro é um curioso "romance de formação visual". Para tentar recuperar a memória perdida, Yambo vai passar uma temporada na casa de campo da família, onde descobre porões e sótãos abarrotados de signos de seu tempo de infância, do velho rádio Telefunken aos diários escolares.

É preciso "dar vida" àquilo, isto é, religar o personagem às suas marcas, no que ela tem de afetiva. Mas o ensaísta Umberto Eco não se entrega - é ele que dá as cartas do livro o tempo todo, que vive a volúpia da enumeração bibliográfica, o preciosismo vocabular, a memória filtrada pelo etalhe escolar da aula. Assim, mesmo os momentos mais marcantes do livro, como a participação do jovem Yambo na emboscada a dois alemães no período fascista, esvaziam-se de afeto, sob a lente fria do tempo. E o que é admirável é que a estrutura do romance terá sempre o álibi do personagem, que, afinal, não vive mesmo a memória afetiva, e, bibliófilo, tem no "catálogo" a sua linguagem.

A ilustração, aqui, vai numa direção contrária do uso da imagem na obra de W. S. Sebald, certamente ma referência para Umberto Eco. Em "Os Imigrantes" (Record), por exemplo, Sebald cria biografias imaginárias de exilados alemães pontuadas por velhas fotos em preto-e-branco em que a suposta distância historiográfica, marcada por um estilo quase cartorial, vai transbordando poderosamente os seus limites para a densa e tensa representação de um mundo arruinado.

Ao final do romance, Eco testa os limites de sua perícia narrativa, sempre na fronteira entre o fato e paródia, ao avançar por uma espécie de apoteose kitsch, na inspiração direta dos quadrinhos da infância, agora amalgamados em imagens oníricas. Uma prova de fogo. Caberá ao leitor decidir se o livro passa por ela incólume ou se o autor não acabou corroído pela própria força do kitsch que pretendeu ilustrar.


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