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Entre a dor e o nada
Revista Cult, nº 68 - abril de 2003
Palmeiras Selvagens, de William
Faulkner
Cristovão Tezza
A primeira peculiaridade que chama a atenção do
leitor de Palmeiras Selvagens, de William Faulkner, é
o fato de que se está na verdade diante de duas narrativas
completamente diferentes (Palmeiras selvagens, que dá título
ao volume, e O velho), cujos capítulos vão se alternando
até o fim sem nenhuma outra ligação aparente
entre eles além da simples seqüência. Perguntado
por que havia encaixado os capítulos de duas histórias
autônomas, o próprio Faulkner se divertiu respondendo
que, isoladas, as histórias seriam curtas demais para a
publicação em livro. Mas acrescentou, mais sério,
que elas tratam de "dois tipos de amor", o que talvez
desse uma pista para a relação entre elas. O bom
leitor, entretanto, sabe que o mesmo aconteceria em quaisquer
dois romances intercalados de um mesmo autor: procurando, sempre
encontramos alguma conexão. E isso é particularmente
verdadeiro em Faulkner, um escritor assombrado por algumas poucas
obsessões que são recorrentes na sua obra inteira.
As duas histórias já foram publicadas isoladamente
em edições portuguesas, sob os títulos "Palmeiras
Bravas" e "O homem e o rio". Assim, se o leitor
preferir se concentrar primeiro numa das narrativas e depois na
outra, pulando os capítulos como num "jogo da amarelinha"
(mas, é bom lembrar, sem nenhum parentesco com a obra célebre
de Cortázar), não perderá nada. De fato,
ganhará intensidade, porque as duas histórias têm
pesos bastante distintos, de certa forma sintetizando as duas
linhas que, grosso modo, acompanham a sua obra - a concepção
trágica irremissível de seus romances maiores, como
O som e a fúria e Absalão! Absalão!, por
exemplo, presente em "Palmeiras Selvagens", e o retrato
mais pitoresco, ou mais bem-humorado, digamos assim, que ele faz
de uma fatia congelada do sul dos Estados Unidos, encontrado em
livros como A cidade (The town) ou Os invictos (The reivers -
a reminscence), e, aqui, em "O Velho".
"Palmeiras Selvagens" conta a paixão vivida em
poucos meses entre Wilbourne, um médico recém-formado,
virgem aos 27 anos, e Charlotte, uma mulher casada, com duas filhas.
A história começa já próxima do seu
fim, com a linguagem serpenteante de Faulkner concentrando-se
na noite em que Wilbourne pede ajuda a um outro médico
para salvar Charlotte das complicações de um aborto
que a levarão à morte, aborto que o próprio
Wilbourne fez a contragosto. Dali, para trás, acompanhamos
a crônica de uma tragédia anunciada (Faulkner, a
propósito, foi uma das mais marcantes influências
de Gabriel Garcia Márquez - livros como Crônica de
uma morte anunciada e A paixão nos tempos do cólera
têm arquiteturas tipicamente faulknerianas). Uma tragédia
no sentido clássico do termo, na medida em que a vontade
humana, no universo de Faulkner, será sempre uma pálida
intenção, uma cegueira, um tatear perdido em meio
à força avassaladora do destino. A escolha, para
ele, é a realização de uma teimosia, de uma
insistência, de uma obstinação secreta e indevassável
- não há, de fato, escolha alguma. Os personagens
de Faulkner não podem deixar de fazer o que fazem - parece
que parte substancial de sua tensão narrativa caminha sobre
essa lâmina. O resultado literário terá daí
uma dimensão paradoxal: um dos mais revolucionários
narradores do século XX sustenta toda a sua literatura
num universo essencialmente conservador - não contra esse
universo; Faulkner, de fato, o assimila, integra-se a ele para,
quem sabe, melhor compreendê-lo. Nele, sentimos o peso e
a memória escravocratas do sul dos Estados Unidos, a sombra
fantasmagórica de uma guerra civil e de sua derrota metafísica,
sentimos a sua visceral incapacidade de transformação,
incapacidade que será em boa parte a matéria prima
de Faulkner, sempre atual - trazendo-o para o momento presente,
podemos ver na obsessão milenarista recorrente e obtusa
de George Bush, o filho, a exata expressão de um personagem
de Faulkner.
O realismo de Faulkner tem assim essa face enganadora: talvez
poucos escritores, como ele, apóiam cada sentido e palavra
no mundo das coisas, no mundo brutalmente concreto dos objetos
visíveis, no mundo que se desenrola interminavelmente ao
olhar da narração, mas uma narração
que avança sem saber exatamente o que está vendo,
insistindo no olhar para melhor descobrir. E o que ela quer revelar
não são as ações, as causas e os efeitos,
nem mesmo o desenrolar do tempo e de suas conseqüências,
na melhor tradição da narrativa americana, na literatura
e no cinema. Em Faulkner, ao contrário, a ação
não satisfaz nunca; aliás, nem mesmo interessa de
fato, porque o mundo inteiro de seus romances já se explicita
quase que na primeira página. Nas palavras de Sartre, em
um ensaio sobre O som e a fúria, os heróis de Faulkner
"nunca olham para a frente; eles olham para trás,
enquanto o carro os leva adiante". O que ele busca é
a essência; não é exatamente o real, mas a
verdade. O médico se aproxima da cabana onde Charlotte
está morrendo "como se já vislumbrasse a verdade,
a indefinida forma sombria da verdade, como se estivesse separado
da verdade apenas por um véu".
Se para a consciência moderna as coisas "não
têm sentido" e o ser humano é uma coisa entre
outras coisas, para Faulkner as coisas "perderam o sentido"
e o olhar narrativo é uma busca interminável, necessariamente
fracassada, de um sentido primeiro a um tempo obrigatório
e inacessível. Daí a ilusão realista de sua
obra: a brutalidade concreta de seu mundo vai se erguendo, de
fato, sobre uma essência difusa e sempre inexplicada. A
paixão de Wilbourne e Charlotte explode súbita e
a narração não se detém no "processo",
digamos assim; há uma breve sucessão de fragmentos
de cenas em que tudo se descreve, exceto o principal - os personagens
de Faulkner não dialogam jamais; eles vivem monólogos
intermináveis; tudo que eles têm a dizer um ao outro
já está escrito, e basta um olhar para revelar,
ou adivinhar. E quando conversam - como na cena em que o marido
de Charlotte oferece um cheque para a passagem de trem, no caso
de ela quiser voltar para ele - a fala parece obedecer a um script
intocável, a uma lógica transcendente e inacessível
à ação humana. O diálogo em Faulkner
não tem o poder de transformar. O casal apaixonado vai
sucessivamente abandonando tudo - e mais ainda a "respeitabilidade
burguesa" que num momento quase os contamina.
Wilbourne e Chalotte são expressões de uma vida
alternativa contra o "sistema" que, na depressão
dos anos 1930 (o livro é de 39), parece antecipar o ideário
hippie dos anos 70, inclusive pelo seu essencialismo messiânico
- mas há uma determinação superior nesse
abandono. A busca de uma vida, digamos, "autêntica",
que parece mover a paixão dos dois, obedece de fato a uma
ordem muito acima do arbítrio pessoal; o amor é
uma condenação, não uma dádiva ou,
menos ainda, uma escolha: "Estamos condenados, é claro",
diz num momento Wilbourne; "é por isso que tenho medo".
A obsessão pela mulher será, assim, mais um "chamado
ancestral" que a expressão de um indivíduo:
"Ele pensou em como o fracasso, agindo sobre ela como num
homem ao investi-la de uma espécie de humildade digna,
tinha contudo provocado nela a manifestação de uma
virtude que ele nunca vira antes, uma virtude não só
de fêmea mas profundamente feminina".
Em outros momentos, o adjetivo "imemorial" dá
essência à existência (observe-se a força
do "como se", na sintaxe de Faulkner, na perpétua
luta de descobrir o que afinal ele está narrando): "Então
Charlotte aparecia; eles paravam de falar e a observavam aproximar-se,
desviando-se e esgueirando-se entre o amontoado de gente do bar
e por entre os garçons e as mesas repletas, o casaco aberto
sobre o uniforme simples e de bom gosto, o chapéu de lado,
segundo a moda, posto ainda mais para trás como se ela
o tivesse empurrado para lá com o antebraço num
gesto feminino imemorial, advindo do cansaço feminino imemorial,
aproximando-se da mesa, o rosto pálido e cansado também,
embora ela se movimentasse vigorosa e afirmativamente como sempre
(...)" - e a sentença faulkneriana avança em
volutas atrás do sempre impossível (mas obrigatório)
reconhecimento do mundo, em que cada gesto, detalhe, objeto e
sombra, como na caverna de Platão, são sinais angustiantes
de uma ordem superior inacessível.
A segunda história de Palmeiras selvagens de certo modo
ilustra, agora com a limpidez de uma parábola, o que acabamos
de dizer sobre o mundo faulkneriano. Em O velho, nome que se costuma
dar ao rio Mississípi nos Estados Unidos, uma personificação
da natureza que fará todo o sentido na narrativa, conta-se
uma história que terá como pano de fundo uma grande
enchente do rio, tratada pelo romancista como um dilúvio
de proporções quase bíblicas. Ou decididamente
bíblicas, se a idéia do conto como parábola
estiver correta. Com a enchente, os prisioneiros de uma fazenda
penal da região são deslocados de caminhão;
um deles, chamado apenas de "condenado alto", em oposição
a um "condenado baixo", cai na água durante um
translado com um bote e desaparece no rio. Mas ele sobrevive -
e a narração inteira é a história
do presidiário (que havia sido condenado por uma ridícula
tentativa de assalto a um trem arquitetada inteira da leitura
de folhetins) tentando desesperadamente chegar a algum lugar com
o seu bote e se entregar à polícia para voltar à
cadeia. Na louca deriva da enchente do rio, ao sabor das correntes
e contracorrentes, margeando uma geografia que sempre esteve ao
lado dele e que ele nunca conheceu, o condenado acaba recolhendo
uma mulher grávida prestes a dar à luz e todas as
tentativas que faz de entregá-la sã e salva em algum
lugar sólido fracassam - com a roupa de presidiário,
é sempre expulso a tiros e se vê obrigado a voltar
com a mulher para os caprichos da enchente até que chega
a uma ilhota que emerge daquele mar e acaba por atender o parto
da mulher.
Pelo bizarro da trama, esta é uma história mais
leve que a outra - há nela mesmo um toque de humor: o fato
de que um condenado obtuso, cujo único projeto na vida
é voltar a ser preso porque a fazenda penal é o
espaço que lhe dá sentido, representa o depositário
autêntico dos valores da humanidade. Quando finalmente volta
à cadeia, já dado como morto, cria um problema burocrático,
desatado enfim com o acréscimo de dez anos à pena
por "tentativa de fuga", o que ele aceita feliz, relatando
sua aventura aos colegas do presídio enquanto ostenta o
charuto que ganhou do diretor da prisão. Do ponto de vista
da linguagem, é com a volúpia de sempre que Faulkner
descreve a descomunal enchente do "Velho", expressão
de um destino imemorial, poderoso e inescrutável, a mãe
Natureza, diante da qual o homem se move incerto sobre uma casca
de noz. Mas, na sua ética calvinista, é preciso
não desistir; não é o fracasso que representa
a derrota, mas a desistência, mesmo que o projeto seja absurdo,
estúpido ou inexplicável, como, em meio à
miséria, rasgar um cheque de 300 dólares, ou, em
outro plano, atualizando a tragédia, invadir o Iraque.
Assim como o condenado volta à prisão por vontade
própria, Wilborne, condenado a 50 anos de cadeia por homicídio,
num universo moral em que a simples idéia de "aborto"
povoa o mundo do inferno, recusa a oportunidade de fugir oferecida
justamente pelo marido de Charlotte. Em cada linha, Faulkner celebra
a solidão - essa deusa hoje injustamente amaldiçoada
- como o espaço por excelência da nossa grandeza.
A dimensão da escolha, em Faulkner, não tem meios-tons:
estamos "entre a dor e o nada", como dirá Wilbourne.
Ler William Faulkner é uma aventura incomum, uma experiência
que nos revela desde a arquitetura de uma narrativa que, embora
tragicamente determinada, não perde a tensão do
seu momento presente, até a linguagem única, aquela
serpente sintática que avança pelos fatos com o
brilho e o espanto de quem os está vendo pela primeira
vez na vida. A obra de Faulkner é o triunfo da narração
como forma de reconhecimento do mundo. Para quem ainda não
o leu, Palmeiras Selvagens será um belo começo.
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