Pico na veia, de Dalton Trevisan
Folha de S.Paulo, Mais! - 10/11/2002

Cristovão Tezza

Dalton Trevisan é um dos mestres da literatura brasileira. Criador de uma linguagem inconfundível, uma marca pessoal que fez da síntese, da elipse, do silêncio e da ausência, dos pequenos estilhaços de sentido que mesmo quando dizem brutalmente tudo em duas ou três palavras deixam atrás de si uma sombra enorme de sugestão, Dalton acabou por fazer dele mesmo - quem sabe a contragosto - um personagem de sua obra, um velho esquisito que insiste em se esconder em sua Curitiba, na esquina da Ubaldino do Amaral, no bairro do Alto da Glória, atrás de janelas eternamente fechadas. Fotografias? Se vampiro não sai em espelho, para que fotografia? Entrevistas? "Desistam. Só se eu ficar gagá", disse ele anos atrás. "E nem é lá essas coisas", já começam a sussurrar aqui e ali, como seres saídos igualmente de seus contos, mordidos quem sabe de inveja, quem sabe de ofensa: por que esse silêncio no país da cordialidade? Mas o silêncio de Dalton é um problema do jornalismo, não da literatura.

"Ele só se repete!" - dizem em outra ponta. Aqui entramos, afinal, no território do escritor. De fato, em Dalton Trevisan a repetição é a forma essencial do mundo. O que parece um defeito, é na verdade o traço fundamental da literatura de Dalton, o seu peso e a sua metafísica. E também na repetição está a força do seu escárnio - não faça essa pose, não levante tanto a cabeça, não se meta a besta, não vá o sapateiro além dos sapatos, porque não somos nada e não há nada de novo sob o sol: "Tivesse o nariz mais curto, não seria Pascal um grande frasista".

De novo em Dalton, e isso em cada livro, é a fidelidade ao projeto de romper sempre os limites de sua palavra pouca, provocá-la com vara curta, desbastá-la do menor resquício de gordura, purificá-la das más (melhor dizendo, das "boas") intenções. "Um bom conto é pico certeiro na veia" - explica esse narrador obcecado pela magreza, no seu novo livro, "Pico na veia", um painel multifacetado de 205 textos numerados que recuam, salteados, desde narrativas "longas" (uma que outra alcançando em torno de 60 linhas) até o nada - o último texto é a página em branco. A grande maioria se contenta com 4 ou 5 linhas, ou menos, uma frase solta respirando já no último fio do fôlego: "João, tua mulher é amante do doutor Pedro e não é de hoje - Um amigo." Para quem se preocupa com formalização, o título "conto", aplicado a Dalton, precisa se redefinir. E até mesmo as fronteiras da literatura, quando a refração paródica das vozes do mundo, a alma de Dalton Trevisan, cede lugar a ele mesmo, inteiriço: "Curitiba - essa grande favela do primeiro mundo".

Na crescente fragmentação daltoniana parece que o narrador não quer mais apenas contar histórias, estufadas de auto-suficiência, mas contar uma única história, uma espécie de "história do mundo", ou do pequeno mundo, que é só esse que existe: "Nem a alavanca de Arquimedes para deslocar a inércia do meu mundinho". Cada palavra de Dalton ilustra, bíblico ("- Na minha idade sou mais o Eclesiastes que o Cântico dos Cânticos"), o legado da nossa miséria. Mas a brutalidade do seu naturalismo ("- Eu me tornei gorda, feia e velha por amor do meu filho.") não tem nenhuma pretensão de ciência ou de onisciência - é antes a revelação súbita de um olhar, de uma frase, de uma intenção, que se iluminam escarmentos e corroem a palavra no instante mesmo em que ela se ergue. Tudo é simulacro; e para evitar que essa intensidade acusatória, a sintaxe se reduzindo a um dedo apontado nas feridas do mundo, se transforme numa voz totalitária, o moralismo de Dalton se traveste não do sorriso dos superiores ou da compreensão paternal, mas da risada sem dentes do povinho - ricos ou pobres, tudo é povinho -, esboços de Daumier que fazem da derrisão a única forma possível de reconhecimento do mundo. Na composição dos textos, é como se a ciência de Emile Zola fosse submetida a um olhar cubista, num mundo que só nos permite acesso aos estilhaços. São esses pedaços angustiantemente sem transcendência, miseráveis até no tamanho, que a fúria bíblica de Dalton (também ela paródica) organiza no texto. E tudo passa pelo riso - Dalton ri.
E aqui se percebe como Dalton Trevisan, deixando para trás a segurança clássica de seu cemitério de elefantes e de suas novelas nada exemplares, arrisca, levando sempre adiante a fragmentação que há tempos já vinha sendo sua nova marca. O livro passa por um largo espectro dos usos da linguagem oral contemporânea, avança em territórios para ele novos, como o do crack ("Ai, tossinha fodida. Sou é viciada mesmo."), experimenta registros populares ("Daí a gente dormimo junto. Fatal."), tateia em um único instante, aliás inacreditável, talvez o único de sua obra inteira, a possibilidade da inocência infantil ("Esse desenho tão bonito, minha filha, o que é? (...)/ - É o barulho do sol acordando.") e retoma, aqui e ali, os idílios lancinantes em sépia que o fizeram célebre: "De noite à janela, almofada no peitoril, se distrai com o movimento na praça". Em tudo, o mesmo poder transfigurador da palavra, do diálogo mais chão ("A mãe defende o filho: / - Não é culpa dele ser assim. O pai só me procurava bêbado"), passando pela saborosa prosódia de pára-choque de caminhão, em viés feminino ("Na cama em que me deito não cabe outra mulher"), o lamento bucólico ("Araponga - ó sineiro Quasímodo de penas brancas que engoliu o sino."), a voz da "mocinha inválida" ("- Quando ele me massageia a perna por que tanto geme e suspira?"), o bilhete da menina de 13 anos ("Diga pra mãe que eu estou grávida do seu João") - e até mesmo, tangenciando a pieguice, o espanto pelos males do divórcio, quando a filha informa o pai de que sua mãe "está livre".

Nenhum outro escritor brasileiro encontrará tanto prazer no lugar-comum - Dalton chafurda no chavão, no clichê, na frase-feita, no já-dito, em todas as milhares de entonações congeladas do nosso dia-a-dia; na sua mão, a mais surrada frase do último dos seres rutila como um pepita no lodo: "Esbarra na gorda ao pé da escada, toda sorriso no dentinho de ouro". O chavão é a linguagem do mundo e a forma da ambição: "O que mais você quer? Não te dei um relógio que brilha no escuro? Uma calcinha vermelha de renda preta?" O jardineiro mata uma velha com requintes de crueldade e se defende: "Não me arrependo, não; os filhos com fome, a mulher grávida. Desse jeito não dava mais. Era forçoso mudar de vida." Todos os lugares são comuns; há uma circularidade inescapável na danação: na farmácia, a mocinha com o bebê no colo pede "uma caixa de pílula e um batom bem vermelho". Paixão, tragédia, destino e riso avançam de dedo em riste numa obra que se faz, última paródia, em versículos - abra-se Dalton Trevisan em qualquer página, à cabeceira, "na noite branca da insônia", e lá estará inapelável, em cada linha, a força maior de sua literatura.




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